31.3.10

…a fugir de nós mesmos

Normalmente odiamos os chavões pelo facto de que geralmente são verdadeiros, especialmente aqueles que gostaríamos que fossem o oposto da verdade…
Um velho ditado diz, que é mais fácil tirar um escravo da escravidão do que tirar a escravidão do escravo, ou o equivalente judaico – que é mais fácil tirar um judeu do exílio do que tirar a sensação de exílio do judeu.
Entendendo muito bem a psicologia humana (óbvio, pois Deus a criou), Deus jamais deixou a tarefa de tirar o exílio das nossas psiques inteiramente nas nossas mãos. Construiu determinados estágios no ano, que nos tiram das nossas restrições.
Há milhares de anos, nas vésperas de deixarmos o Egipto (Mizraim), um país onde tínhamos sido brutalmente escravizados (os historiadores, baseados em diários e outros registos, notaram que Hitler copiou deliberadamente os actos dos egípcios contra os judeus), os nossos ancestrais sacrificaram cordeiros e comeram-nos juntamente com a matsá (pão ázimo) e maror (ervas amargas). Durante as gerações posteriores, continuamos a comer o cordeiro de Pêssach juntamente com matsá e maror em conexão com aquela última noite no Egipto. Isto terminou aquando da destruição do Segundo Templo. Incapazes desde então de levar o sacrifício de Pêssach todo ano, em vez disso mantemos a sua memória viva comendo matsá e ervas amargas e recitando determinados versículos numa refeição festiva chamada "séder", na véspera de Pêssach.
O séder inteiro, e até os objectos na travessa do sêder, contam a história da nossa escravidão e como Deus nos libertou. Porém há algo que parece fora de lugar sobre o alimento mais associado ao sêder.
O motivo fundamental para a matsá ser comida no séder não está conectado à matsá que os nossos ancestrais comeram naquela última noite de cativeiro. Também não está conectada à maneira maravilhosa como fomos tirados do Egipto. Ao contrário, está conectada a uma estranha série de eventos ocorridos, após a nossa libertação, depois de já termos observado aquele primeiro sêder no Egipto, e depois que os egípcios nos imploraram para partir.
Fizemos alguma massa para servir de alimento durante a jornada, e fugimos. Tendo testemunhado um ano de pragas contra os nossos inimigos e milagres ao povo judeu, tendo visto o próprio faraó vir a correr para nós, vestido em trajes de dormir, implorando-nos para aceitarmos a nossa liberdade e partirmos, corremos rumo ao deserto como gazelas assustadas.
Assim, todos os anos temos no nosso séder, um evento repleto de costumes projectados para fazer-nos sentir como reis (comemos reclinados, cobrimos a mesa com lindos utensílios e prataria reservados exclusivamente para esta ocasião), e dizemos: "Eles assaram bolos de matsá com a massa, porque esta não crescera. Não houve tempo, tinham de sair do Egipto e rapidamente."
Por outras palavras, a matsá que comemos hoje celebra:
1) um engano culinário – não havia tempo para deixar os pães crescerem, portanto tivemos de assá-los achatados, e
2) a nossa pressa devida ao medo.

Isso não parece combinar.

Do que, exactamente, temos medo? E o que mudou entre o momento em que o faraó pediu para partirmos imediatamente, e Moshê, respondeu que partiríamos pela manhã, de maneira digna – e o momento em que pegamos alguma massa crua e corremos?
A Hagadá (o texto que recitamos no séder, contendo instruções para a condução do séder, bem como histórias seleccionadas) começa a sua explicação sobre o porquê de comermos matsá e afirmarmos, de que a massa não teve tempo de crescer antes que Deus Se revelasse a nós, e que este é o momento no qual fomos realmente redimidos. Este é o momento em que devemos fugir.
Observe, que não era do Egipto que estávamos a fugir. Não era o temor de sermos capturados e forçados a ser escravos novamente. Foi o medo de nunca nos tornarmos realmente livres. Foi o medo de nos colocarmos voluntariamente na escravidão. Estávamos a fugir de nós mesmos.
Quando Deus escolheu revelar-Se, entre o pôr-do-sol e o alvorecer, os nossos ancestrais foram suficientemente inteligentes para perceber que esta revelação não era permanente e que o desejo pela liberdade verdadeira despertada dentro deles não duraria. Então, fugiram, o mais depressa possível, da tentação de regredirem. Tiveram um momento de inspiração, e aproveitaram-no.
Quando celebramos a Festa da Liberdade em cada ano, comemos as matsot que mal assadas nos lembram de capitalizar os momentos de inspiração que tivemos e construí-los em dias, meses e anos de genuíno crescimento, como pessoas e como judeus.
No âmago disto tudo, comemos matsá para ajudar-nos a interiorizar o desejo Divinamente inspirado de sermos livres.
A matsá da pressa foi um resultado da revelação Divina. Lembra-nos, que a nossa liberdade é um presente de Deus, e portanto ninguém – nem mesmo nós – pode realmente desprezá-la, perdê-la. Quando o nosso ser físico parece encurralado, mesmo se estivermos a sofrer, mesmo que pareça que estamos na escravidão, jamais podemos ser realmente escravos outra vez. Porque somos judeus, pertencemos a Deus, e somos livres.
Uma vez ao ano, revivemos os eventos que realmente nos destacam como uma nação especial – unidos uns com os outros, e a Deus, mas não limitados por este mundo. Uma vez ao ano, recontamos os primeiros mandamentos que nos foram outorgados, e a incrível fé e coragem com as quais os nossos antepassados os cumpriram. Uma vez ao ano, comemos esta matsá para nos lembrar a querer a liberdade que recebemos, a segurá-la e a viver com ela.