27.3.10

O que é afinal a Páscoa?

Autoria de Jane Bichmacher de Glasman


Nada é por acaso

Nesta semana são comemoradas a Páscoa Judaica e a Cristã. Não é mera coincidência. Durante muito tempo, no início do Cristianismo, as festas bíblicas eram comemoradas na mesma data, segundo o calendário judaico que é lunissolar. A posterior distinção de calendários não impede que as datas das comemorações voltem a coincidir. A maioria das pessoas sabe que Pessach é a Páscoa Judaica, embora, na verdade, a Páscoa seja o Pessach Cristão.


Liberdade e Libertação

O nome Pessach deriva do hebraico passach que significa saltar, passar por cima; comemora a libertação dos judeus do cativeiro no Egipto e é a celebração da liberdade, a história da mobilização do povo para a conquista da liberdade. Para o povo judeu, recordar a saída da escravidão significa ultrapassar os limites que impedem a realização de seu pleno potencial. Em hebraico, Egipto é Mitzraim, que significa estreitezas, limites, angústias, aflições. O “Egipto” de uma pessoa pode ser seu egoísmo, desejos primitivos, vícios. Pessach é uma oportunidade de transcender as limitações e realizar o infinito potencial espiritual em cada aspecto da vida, ultrapassando as aflições que estreitam nossos caminhos. A comemoração de Pessach não foi sempre a mesma. Mudou com o passar dos tempos, mas seu cerne é a liberdade. Originalmente, as comemorações de Pessach eram uma espécie de celebração da primavera, uma festa agrícola, à qual se juntaram as comemorações do Êxodo. “Observa o mês da primavera e guarde o Pessach do Senhor teu Deus, pois no mês da primavera o Senhor teu Deus te tirou do Egito à noite” (Deuteronómio 16:1). A festa de Pessach dura oito dias. Os dois primeiros e os dois são festas solenes; os intermediários são semi-festas. Desde o século I, após a expulsão dos judeus da sua terra, a comemoração de Pessach passou a ser decisiva para que o povo não desaparecesse e continuasse a cultivar a tradição de Pessach como luta pela liberdade (o que justifica, por toda a sua carga simbólica, ter sido mantida pelos criptojudeus através dos séculos, por exemplo).


Seder e Ceia

Em geral, associamos Pessach a uma ceia, assim se referindo ao Seder. Porém Seder significa ordem, em hebraico, relacionando-se à ritualística da noite, que compreende 14 itens a serem seguidos numa ordem específica, dentre os quais, o 10º corresponde à refeição propriamente dita. Embora o Seder de Pessach gire em torno de alimentos, eles têm um carácter mais simbólico que comestível. A principal bandeja que se coloca à mesa, a Keará, não é para ser consumida - sua função é pedagógica. Quando Rabi Gamaliel instituiu o Seder, ele estava preocupado em manter viva a esperança do povo, lembrando que isto foi feito no período da dominação romana. O Seder é uma representação de um relato histórico, ao vivo, com um narrador, em geral o pai da família, o que se repete todos os anos em cada lar judeu, nas duas primeiras noites. E na vida moderna urbana, quando os horários e ocupações não combinam, o Seder representa um novo papel. Pelo menos durante uma semana de reunião, a família repensa grandes temas pelos quais vale a pena lutar, como liberdade e esperança. Na primeira noite do Seder, há sempre alguns convidados. É dever convidar aqueles que estão tristes, sós, sem família, para que possam celebrar junto a Festa da Liberdade.


Seder e Eucaristia

A última Ceia de Jesus foi a celebração de um Seder de Pessach. No Catolicismo, dela são mantidos elementos em comum até hoje, desde objectos ritualísticos, com outros significados simbólicos e religiosos, presentes em toda missa. O pão, a hóstia, é a matzá também parte do ofertório. O cálice de vinho, sendo apenas um, vem dos quatro copos tomados durante o Seder e, no judaísmo, o cálice do Kidush (santificação).


Desacertos da História

Lembremos que no terceiro copo de vinho, abrem-se as portas para entrar o profeta Elias, que segundo a tradição visita as casas judias na noite do Seder e que anunciará a vinda do Messias. Deve-se deixar a porta entreaberta para facilitar a entrada do profeta Elias, mas sendo ele tão poderoso a porta fechada seria um problema? O costume tem também outra origem: Infelizmente, eventos associados a Pessach, foram responsáveis pela morte de milhares de judeus. Marranos ou criptojudeus (cristãos novos, convertidos à força, que mantinham seu judaísmo em segredo) eram particularmente vigiados e presos em Pessach pela Inquisição, como hereges. A acusação de "assassinato ritual" levou ao massacre e expulsão de diversas comunidades europeias: os judeus eram acusados de matarem criancinhas cristãs para fazer matzá com seu sangue (?!)- um absurdo para quem tenha alguma noção de Kashrut, leis dietéticas e de pureza judaicas, que proíbem terminantemente ingestão de sangue. A porta ficava aberta porque as famílias judias queriam que os vizinhos cristãos pudessem ver a qualquer momento o que os judeus estavam fazendo. Essa calúnia passou à história com o nome de “assassínio ritual” ou libelo de sangue. Mas nem sempre se podia deixar a porta aberta, como nos tempos da Inquisição, quando o Pessach era celebrado na clandestinidade. Sem falar na acusação milenar de "judeus deicidas", assassinos de Jesus, e a trama de Judas, prática tão conhecida no Brasil... Ou a super limpeza anual de Pessach, que aliada a outras práticas judaicas de carácter higiénico (como banhos, trocas de roupas, cuidados com os mortos, doentes, etc.) pouparam judeus de morrer tanto quanto os demais, em epidemias como a Peste Negra- e que por isso, foram acusados de causá-las, determinando sua perseguição e massacre... Embora nas últimas décadas a Igreja Católica venha se empenhando em reconhecer erros do passado e pedir perdão por eles, determinados preconceitos são muito difíceis de serem desarraigados da cultura popular. Em português, eles determinaram conotações vocabulares negativas e pejorativas, como judiar, judiaria e a associação de judeu a usurário no anedotário. Como fato histórico, os judeus, originalmente pastores, agricultores, artesãos e profissionais liberais, foram forçados a se dedicar ao comércio devido a restrições a eles impostas na Idade Média, como possuir terras, etc..


Páscoa com Z

Pessach, Passchah ou Páscoa, o essencial é que nós, da raça humana, aprendamos a nos libertar de nossos preconceitos, através do esclarecimento e da prática da tolerância e não discriminação. E que possamos caminhar, assim, para uma verdadeira PAZcoa, PAZcomAmor!


A matzá, a hóstia e a ironia


A ceia que foi a origem da eucaristia era um seder de Pessach. A origem da hóstia é o pão ázimo (matzá). A palavra vem do latim hóstia (= vítima); significa “vítima oferecida em sacrifício para uma divindade” e “partícula de pão ázimo que se consagra durante a comunhão”. Em hebraico, as palavras correspondentes são Korban e Matzá, respectivamente. Antigamente na Igreja os fiéis ofereciam o necessário para o culto, sobretudo o pão e o vinho. Desde o século XI, o pão utilizado no altar é preparado à parte pelo clero. Ele tem que ser de farinha, ázimo e com marcas que o distinga do pão comum. No século XI, a Igreja católica ordenou que se utilizasse na Missa somente pão sem levedura. Quanto à forma do pão eucarístico, o Papa São Ceferino (séc. III) os chama de "coroas" por causa de sua forma redonda.


Em suma: a hóstia é basicamente uma matzá shemurá kasher!


Mas a macabra ironia começa um pouco depois. Em 1215, no IV Concílio Laterano, foi estabelecido o dogma da transubstanciação, que afirma que o pão e o vinho da comunhão não somente simbolizam, mas milagrosamente se transformam no corpo e no sangue de Cristo. Esta doutrina, associada a outras medidas discriminatórias contra os judeus[4], tornou-se fonte de anti-semitismo cristão. Destacam-se duas calúnias:

1) Profanação da hóstia: Durante muito tempo, circularam acusações de que a hóstia era profanada pelos judeus, que tentavam roubá-la para esfaqueá-la, atormentá-la e queimá-la numa tentativa de “recrucificar” Jesus. Muitas histórias circulavam para ilustrar. Em 1298, a acusação de profanação da hóstia fez com que toda a população judaica de Röttingen fosse queimada, seguindo-se um massacre dos judeus por toda a Alemanha e na Áustria. 100.000 pessoas foram assassinadas e em torno de 140 comunidades judaicas dizimadas. Em Praga, em 1389, um sacerdote carregando uma hóstia foi acidentalmente salpicado de areia por algumas crianças judias que brincavam. Em consequência disto, 3.000 judeus foram massacrados.

2) Libelo de Sangue: afirma que judeus matam cristãos para obter sangue para Pessach e outros rituais. Acreditava-se que os judeus precisavam beber sangue cristão a fim de que sua aparência pudesse continuar humana; o sangue cristão também ajudava a eliminar o foetur judaicus, "fedor de judeu", que era transformado em "odor de santidade" possuído pelos cristãos. Outra versão desta acusação era que os judeus sequestravam bebes cristãos, matavam e moíam seus corpos para fazer matzá para Pessach. Esta calúnia é tão absurda que seria cómica se não tivesse tido consequências tão trágicas. Ao povo judeu é proibido beber o sangue de qualquer animal, muito menos sangue e carne humanos. Apesar de sua óbvia falsidade a qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento das leis dietéticas judaicas, milhares de judeus foram assassinados por causa desta mentira. E pior: ela continuou até nossos dias... Entre 1880 e 1945, o libelo de sangue espalhou-se largamente no centro da Europa Oriental. O jornal nazista Der Stürmer apresentava regularmente figuras de rabinos chupando o sangue de crianças alemãs. E a calúnia persiste, principalmente na imprensa muçulmana extremista anti-israelita... O aparecimento de tais doutrinas mostra uma completa ignorância do estilo de vida do povo judeu, bem como uma falta de diálogo e relacionamento cristão-judaico. A própria Igreja Católica só o declarou falso depois da década de 1960.Parece absurdo que tal coisa ainda aconteça nos dias de hoje, mas o anti-semitismo não morre facilmente.

Para concluir, não posso deixar de mencionar um outro lado da história: a dos marranos. Estes heróicos secretos de um judaísmo do qual foram despojados por um baptismo forçado em terras ibéricas em tempos medievais, ao serem “redescobertos” no século XX, conservavam o Iom Kipur, o Jejum de Ester (na véspera de Purim) e Pessach (Páscoa), por eles chamada a Festa Santa, a sua festa mais importante. Em interessante documentário mostram como os marranos de Belmonte (hoje uma comunidade guiada por um judaísmo conservador tradicional) assavam as matzot em uma cerimónia especial, com lençóis brancos, estendidos no chão, e as mulheres que se ocupam do afazer, também vestidas de branco. No passado, costumavam assar as matzot só no terceiro dia de Pessach para enganar a Inquisição, que invadia as suas casas na noite do Seder (primeira noite da festa) a fim de procurar a prática da fé judaica. As cantigas que entoam, antigamente eram cantadas em pequenos grupos, em tom baixo, quase sussurradas. No quinto dia da festa, ao raiar do dia, saíam para o rio próximo à cidade, cada um levando um galho de oliveira. A cerimónia no rio era um dos momentos mais importantes da vivência marrana. Eles batiam no rio em lembrança da abertura do Mar Vermelho e atravessavam-no diversas vezes. Os galhos de oliveira eram guardados até ao ano seguinte para assar as matzot. Entre os que comemoravam Pessach escondidos, buscando driblar a Inquisição, e os que abrem as portas de suas casas no Seder, tanto para que entre o que tem fome como para se verifique que não há sangue no ritual nem carne de criancinha cristã, seguimos celebrando a liberdade e esperando por maior tolerância entre os homens de boa vontade. Mais que tolerância – a aceitação.