PORTAL PARA UM PASSADO PORTUGUÊS
Michael Freud
Presidente da SHAVEI ISRAEL
Situada ao longo da margem direita do Rio Douro no norte de Portugal, a cidade do Porto parece um lugar pouco provável para um dos mais intrigantes e talvez menos conhecidos, dramas da história judaica do século XX.
Com as suas largas avenidas, movimentado porto e a altamente lucrativa indústria vinícola, o Porto transmite ao visitante como sendo um típico centro comercial europeu, no qual monumentos medievais e imponentes catedrais erguem-se a apenas algumas quadras de modernos edifícios de escritórios e fileiras de bancos e outras instituições financeiras.
Contudo, numa pequena e modesta rua chamada Rua de Guerra Junqueiro, ergue-se a majestosa sinagoga chamada Mekor Haim (“Fonte de Vida”) a qual, uns setenta anos atrás, foi o foco de um extraordinário e breve, ressurgimento da vida judaica entre os milhares de anussim (palavra hebraica que significa: "aqueles que foram forçados", e que é como muitos Marranos preferem ser chamados) da região.
O nascente movimento para regressar ao Judaísmo foi liderado por ninguém mais que um oficial condecorado do Exército Português, Capitão Arthur Carlos de Barros Basto, que serviu lealmente o seu país na Primeira Guerra Mundial. E enquanto o seu decidido esforço para estimular um retorno em massa ao Judaísmo era definitivamente reprimido pelas autoridades, ele continuava capturando a imaginação de judeus e não-judeus da mesma maneira.
Nascido numa aldeia próxima ao Porto em 1887, Barros Basto era um descendente de anussim. Ele cresceu com a vaga memória dos seus avós secretamente acendendo velas nas noites de sexta-feira e observando outros rituais judaicos.
“Aparentemente não há nenhuma dúvida de que o seu avô sabia a origem judaica da família ... e de que ele transmitiu isto ao seu neto.” diz Inácio Steinhardt, correspondente em Tel Aviv para a Agência Portuguesa de Notícias e co-autor da biografia de Barros Basto publicada em 1997. Já bem jovem, diz Steinhardt, Barros Basto tinha uma tendência “de sentir desgosto por certas facetas” do Catolicismo com o qual ele foi educado, “e de idealizar uma relação mais sublime com o Criador.”
Em 1916, enquanto lutava na frente europeia, Barros Basto comandou um esquadrão de infantaria e participou de combates nos Flandres, onde ele até mesmo sobreviveu a um ataque de gás. Lá, de acordo com o historiador Howard M. Sachar, Barros Basto teve uma experiência que mudaria a sua vida.
Numa noite de sexta-feira, ele entrou na tenda de campanha de um oficial de ligação francês que por acaso era judeu. Quando ele viu o oficial a acender as velas, o francês explicou que isto era uma “tradição judaica de Shabat”. Para Barros Basto, escreve Sachar no seu livro Farewell España: The World of the Sephardim Remembered, “ a vaga memória do ritual dos seus avós de repente entrou em foco.” Ele voltou para Portugal como um homem mudado.
Determinado a passar por uma conversão formal ao Judaísmo, Barros Basto superou numerosos obstáculos e foi para o Marrocos Espanhol, onde ele completou o seu objectivo e retornou à fé dos seus ancestrais sob a orientação do Rabinato em Tetuan.
Com um novo entusiasmo, Barros Basto regressou para o Porto, casou-se com uma judia, e dedicou-se à missão de encorajar os seus patrícios cripto-judeus a sair do armário e abertamente retornar ao Povo Judeu. Ele fundou uma sinagoga e deu início a um semanário, HaLapid, no qual ele escreveu sob o seu nome hebraico de Abraham Ben Rosh.
Vestido com o seu uniforme militar, Barros Basto começou a visitar áreas remotas através do norte de Portugal, incentivando os anussim para abraçar o Judaísmo. “Ele iniciou um processo de receber os cripto-judeus e os seus descendentes de volta ao Judaísmo”, diz Rufina Bernardetti Silva Mausenbaum, escritora e descendente de anussim portugueses. “Ele viajou através das aldeias e cidades para assegurar a estas assustadas pessoas que, finalmente, era seguro praticar abertamente o Judaísmo outra vez … essas viagens eram feitas com a companhia de dois médicos para realizar circuncisões quando fossem necessárias”.
Como resultado desses esforços, Barros Basto tornou-se rapidamente conhecido como o “Apóstolo dos Marranos”. E em poucos anos os seus esforços começaram a dar frutos, quando a sinagoga Mekor Haim no Porto foi formalmente consagrada. O prédio, o qual foi doado por Elie Kadoorie e construído sobre terreno adquirido pelo Barão Edmond de Rothschild de Paris, começou a ser utilizado como uma espécie de quartel-general do movimento liderado por Barros Basto para restituir os anussim ao povo judeu.
Reconhecendo a importância da educação, Barros Basto teve êxito na fundação de uma yeshivá nas instalações da sinagoga, a qual ele chamou Rosh Pina, “pedra angular” em hebraico. A escola funcionou por nove anos, durante os quais foram instruídos aproximadamente noventa estudantes, em matérias que iam desde hebraico até história e tradição judaicas.
Todas estas actividades, contudo, não passaram desapercebidas pela Igreja e pelas autoridades, as quais não simpatizavam com os esforços de Barros Basto, principalmente quando milhares de pessoas começaram a responder ao seu apelo de retornar ao Judaísmo.
“O anti-semitismo estava exaltado na Europa durante os anos 30, funcionando contra os seus esforços e sonhos,” diz Mausenbaum. “Esta onda de anti-semitismo passou impetuosamente através de Portugal também, afetando o ressurgimento da vida judaica que ele tinha acendido, a qual era vista com severa crítica pela Igreja e pelo novo regime liderado por Antônio Salazar [o autoritário Primeiro Ministro português que governou o país de 1932 a 1968].”
Em 1935, um padre do Porto chamado Tomaz Correia da Luz Almeida pôs em marcha uma série de eventos que levariam finalmente à expulsão de Barros Basto do exército e à desintegração do movimento por ele fundado.
Ansioso em deter a maré daqueles que abandonavam o Catolicismo para retornar ao Judaísmo, Almeida levou à polícia acusações contra Barros Basto, alegando que ele era um “degenerado” que praticava atos homossexuais com os seus estudantes.
O promotor do Porto apresentou acusações contra Barros Basto, levando o Exército Português a iniciar uma corte marcial contra ele. Após arrastar-se por dois anos, o caso foi finalmente encerrado em 1937 por falta de evidência.
Mas, como coloca o historiador Sachar, “o dano estava feito. Em meado dos anos 30, os pais retiraram as suas crianças da escola Rosh Pina, e Barros Basto tornou-se persona non grata entre os seus, antes devotos, seguidores marranos.”
Em 1943, o Ministério da Defesa português, citando razões não especificadas de “bom e bem-estar”, revogou a patente de oficial de Barros Basto e sumariamente retirou-o do serviço nas Forças Armadas, levando os historiadores a chamá-lo de o “Dreyfus Português” (analogia ao oficial de estado-maior francês Alfred Dreyfus, que foi injustamente acusado e condenado por traição em 1894).
Os milhares de anussim os quais Barros Basto tinha inspirado a investigar a sua ascendência e herança judaicas, rapidamente captaram a mensagem: ainda não era seguro retornar ao Judaísmo. E então, quase tão rápido como tinha começado, o movimento iniciado por Barros Basto rapidamente desapareceu.
Subindo as escadas para o último andar da sinagoga Mekor Haim, eu sigo por um corredor e entro na biblioteca. Alinhados nas prateleiras, estão uma variedade de livros religiosos, muitos dos quais cheios de poeira e rasgados, indicando tanto a sua idade como o amplo uso ao qual foram submetidos no passado. Impulsivamente, eu abro um armário na parede, onde descubro uma pilha de velhos livretos em português, cuidadosamente encadernados e embrulhados como se estivessem aguardando a sua distribuição.
“Catecismo Israelita”, um volume de 59 páginas, tratando sobre a missão do povo judeu neste mundo e sobre vários aspectos da filosofia e prática judaicas. “Judeus & Prosélitos”, explicando em 45 páginas, o significado da conversão e a postura judaica em relação aos convertidos através dos tempos. Ambos livretos orgulhosamente possuem o nome de “A.C. de Barros Basto” na sua capa, e a indicação impressa de que são publicações da Yeshivá Rosh-Pina, a escola a qual ele trabalhou tão duro para a fundar.
Deixando a sala, eu sigo para o balcão das mulheres, o qual domina o santuário principal onde inumeráveis anussim portugueses, indubitavelmente liderados pelo próprio Barros Basto, uma vez uniram-se para oferecer orações exactamente como os seus ancestrais fizeram antes deles. O interior da sinagoga é admiravelmente belo, contudo o silêncio é tão penetrante quanto angustiante.
“A sinagoga pode estar vazia, mas você pode sentir as vozes dos fiéis que uma vez rezaram aqui.” diz o rabino Eliyahu Birnbaum, ex-Rabino Chefe do Uruguai que me acompanhou na visita. “Embora a biblioteca e o beit midrash não estejam mais em uso, você ainda pode sentir e escutar os estudantes que uma vez sentaram aqui, aprendendo Torá e lutando com a velha pergunta: O que significa ser um judeu?” diz ele.
Contudo, eu permaneço aflito. Aqui, por um breve período de alguns anos, aproximadamente sete décadas atrás, um súbito despertar teve lugar.
Milhares de portugueses, homens e mulheres, cujos ancestrais tinham sido forçados a adoptar o Cristianismo quinhentos anos atrás, repentinamente abandonaram o segredo e sonharam reivindicar o que tinha-lhes sido tomado à força. Poderia ser, pensei, que o Pintele Yid, a centelha judaica, tenha sobrevivido em Portugal por todos estes séculos para apenas reviver brevemente nos anos 30 e então ser soprada num espasmo de intolerância pelos perseguidores de Barros Basto?
Não, mais tarde me assegura Rufina Mausenbaum, a obra de Barros Basto não era de vida curta. “Embora ele nunca tenha tido êxito em ressuscitar o potencial completo do Judaísmo português no seu tempo,” disse ela, “Eu acredito que ele deu esperança e força, e que ajudou a alimentar a alma judaica das comunidades dos judeus secretos de Portugal.”
“Hoje”, diz ela, ”os jovens anussim de Portugal olham para Barros Basto como uma inspiração, falando abertamente e desejando pelo seu próprio ‘Ben Rosh’, como ele era conhecido, para auxiliá-los no seu retorno”.
Na verdade, Inácio Steinhardt, o biógrafo de Barros Basto diz que a maioria dos membros da actual congregação (que conta com algumas dezenas de membros) é de “pessoas que encontraram as suas raízes judaicas e retornaram ao Judaísmo ou estão no processo de retorno.” Um ambicioso esforço de Moshe Medina, dinâmico presidente da sinagoga e nascido em Israel, diz ele, com o objetivo de atrair os anussim locais, dando-lhes as boas-vindas na comunidade e educando-os sobre o Judaísmo.
Marco, irmão de Medina, confirma que um renascimento, está a caminho. Recentemente, relata, ele estava sentado num café no Porto lendo um livro em hebraico. Então um jovem português aproximou-se e perguntou que idioma era aquele do livro.
“Quando eu disse que era hebraico, ele ficou todo entusiasmado porque ele era um dos anussim,” diz Medina. “Ele disse, ‘Eu amo Israel e amo o Povo Judeu – meu povo!’.
Então eu o convidei para vir à sinagoga e aprender mais sobre a sua herança judaica.”
“Todas as semanas recebo ligações telefônicas de Marranos portugueses buscando uma conexão com o Judaísmo,” diz Medina. “Eles querem aprender mais, celebrar as festividades judaicas e querem tornar-se judeus. Existem várias centenas de anussim nesta área, e nós necessitamos estender-lhes a mão.”
Parece então que Rufina Mausenbaum tinha a razão afinal de contas. Após décadas, os esforços de Barros Basto continuam repercutindo entre os judeus ocultos do Porto. “Os sonhos e feitos de Barros Basto,” conta ela, “são indestrutíveis”.
É a tenacidade da alma judaica, que contra todas as probabilidades, está lutando para ressurgir em lugares como o Porto.
E enquanto parecem enfrentar uma batalha colina acima, os anussim de Portugal podem pelo menos encontrar consolação no facto que embora o seu oficial comandante, Capitão Arthur Carlos de Barros Basto, não esteja mais presente, o seu sonho e o seu espírito estão ainda bem vivos!
Tradução: Ricardo Ben Nathaniahu
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