"Também temos culpa"
Trechos da entrevista com o palestino - Bassem Eid publicada na revista “Veja”O palestino Bassem Eid denuncia violações dos direitos humanos cometidas pelos próprios palestinos e que têm como vítimas os habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Eid já foi preso pela polícia palestina, acusado de traição e ameaçado por grupos terroristas.
“Estamos a viver um período de terror que nada deve aos piores momentos da ocupação militar israelita. Nos últimos cinco anos, mais de 350 palestinos foram assassinados por razões políticas pelos próprios palestinos. Esse número equivale a 10% dos civis mortos pelas tropas israelitas nesse período. Essa guerra interna nos territórios ocupados já tem até nome – é a "intrafada”. A matança promovida por grupos armados contra integrantes de facções rivais, debaixo do nariz das forças de segurança palestinas, responde pela maioria das mortes. A violência sob a chancela oficial também é alarmante. Há casos de pessoas que ficaram três anos detidas sem acusação formal. Tivemos palestinos mortos na prisão e outros ameaçados, torturados e perseguidos como se fossem bandidos. São pessoas acusadas de colaborar com os israelitas, mas o único crime da maioria dessas vítimas foi divergir da Autoridade Palestina”.
“É possível dividir a sociedade palestina em três categorias. A primeira, que abriga a maioria, é formada pelos cidadãos que têm medo da Autoridade Palestina e dos grupos armados. A segunda inclui os que defendem apenas os seus interesses pessoais – e perderam o que chamo de interesse público. A última é a dos alienados, que não se importam se vivemos numa ditadura ou numa democracia. Nenhum desses grupos se propõe a denunciar os abusos cometidos pela Autoridade Palestina e pelos bandos armados. Também não vejo uma articulação pela democracia no meio académico ou na imprensa palestina”.
“O medo da repressão ajuda a explicar esse silêncio. Mas há outros motivos. Os palestinos fazem parte do mundo árabe. A nossa única referência são os regimes autoritários da região, ou seja, em nossa natureza, somos um povo violento”
“Por incrível que pareça, antes da retirada das tropas israelitas os palestinos tinham mais segurança. As tropas israelitas impediam que os grupos armados agissem livremente. Depois da retirada, os terroristas do Hamas impuseram a lei do terror aos moradores de Gaza. Além disso, passaram a lançar mísseis contra as tropas israelitas do outro lado da fronteira. Estas respondem com tiros e acabam por atingir civis. É a estratégia do Hamas: mostrar aos palestinos que os israelitas não saíram de Gaza”.
“Yasser Arafat foi um ditador. Ele usou a ocupação israelita como desculpa para os seus erros. Aliás, a mania de responsabilizar os outros pelos próprios fracassos é uma característica da sociedade palestina. Que ligações têm os israelitas têm com as violações dos direitos humanos cometidas por palestinos contra palestinos nas nossas prisões? Nenhumas, mas insistimos em culpá-los. Não temos autocrítica e estamos a pagar por isso”.
“A intifada foi um desastre, a pior coisa que poderia ter-nos acontecido. Não conseguimos nada e ainda perdemos o pouco que havíamos conquistado no passado. Tudo por culpa de Arafat, que governava de acordo com os seus interesses pessoais, e não com os do povo palestino. Ele comandava pessoalmente os grupos armados que alimentavam a intifada. É interessante notar que, até ao dia da sua morte, mais de 80% dos palestinos apoiavam a intifada. Hoje, esse índice não passa de 40%. As pessoas perceberam que não avançamos no que era mais importante, a criação do Estado palestino”.
“O pior de todos de Arafat foi a roubalheira que ele patrocinou. Arafat tomou posse como presidente da Autoridade Palestina em 1996, mas já era corrupto desde que assumiu a liderança da Organização para a Libertação da Palestina, 30 anos antes. O mundo fechou os olhos porque Arafat sempre foi peça-chave para um acordo de paz com Israel. Desde 1996, estima-se que mais de 60% da ajuda financeira internacional aos palestinos tenha sido desviada. Quem percorre hoje os territórios administrados pela Autoridade Palestina percebe que em 10 anos a miséria continua igual”.
“Os israelitas acreditam que Abu Mazen é mais democrático do que Arafat, o que facilitaria um diálogo directo. O problema é que ele tem o DNA ideológico de Arafat. Ambos fazem parte da mesma geração de líderes palestinos que surgiu e cresceu sob regimes autoritários do Egipto, Síria, Argélia, Iraque e Jordânia. Esses políticos nunca praticaram nenhum tipo de democracia, e agora não seria diferente com Mazen”.
“Abu Mazen não tem força política para nada. O sucesso ou o fracasso do seu governo está nas mãos do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Restam-lhe duas opções: ou aceita as exigências israelitas para assinar a paz ou os palestinos continuarão a brigar entre si. Para fechar um acordo com Sharon, ele terá de desarmar o Hamas e a Jihad Islâmica, entre outros grupos terroristas. Se tomar essa iniciativa, ele correrá o risco de cair. Como nenhum palestino quer perder o emprego, muito menos Abu Mazen, as coisas devem continuar como estão”.
“Caso Abu Mazen decida desarmar os grupos terroristas na marra, é provável que tenhamos um conflito. Milhares de palestinos seriam mortos por outros palestinos. Historicamente, em determinadas situações, a guerra civil é até benéfica. No caso palestino, obrigaria o governo a combater e desarmar grupos extremistas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Isso ajudaria a abrir caminho para uma solução do conflito com os israelitas”.
“Tivemos várias oportunidades de fechar um acordo definitivo, inclusive os que contemplavam a criação de um Estado independente. Mas o rancor pelo sofrimento vivido e o orgulho sempre falaram mais alto, e acabámos por desperdiçar todas essas chances”
“Os palestinos têm de ser realistas na mesa de negociação. Está na hora de aprender que a vida vale mais que um pedaço de terra. Milhares de palestinos morreram nos últimos anos, e o que conseguimos em troca? Precisamos primeiro, aceitar que os EUA são a única superpotência mundial. Não haverá acordo sem a bênção da Casa Branca. Além disso, os palestinos precisam convencer os países árabes a manter relações com Israel. Os outros entraves que costumam impedir um acordo serão mais simples de resolver”.
“O direito de retorno dos refugiados ao território que hoje constitui Israel é uma bandeira usada mais pela Autoridade Palestina do que pelos próprios refugiados. A insistência de incluir essa exigência como questão inegociável foi um artifício utilizado por Arafat em 2000 para irritar os israelitas e mantê-los sob pressão. O que realmente interessa a esses refugiados e descendentes é obter emprego, moradia digna, hospitais e escolas para os filhos. Não se fala mais em direito de retorno. A maioria dos palestinos esqueceu o assunto”.
“Pergunte a qualquer palestino que passa três horas por dia nos postos de controle israelitas qual é o seu maior sonho e ele responderá: liberdade de movimento para poder trabalhar em Israel. Isso mostra que o que nós, palestinos, precisamos é de uma economia robusta, para termos acesso a uma vida mais digna. O mundo acredita que o Oriente Médio será um paraíso se houver paz entre israelitas e palestinos. Não é bem assim. O ex-primeiro ministro israelita Shimon Peres acertou quando disse que o desenvolvimento económico da região, e não um acordo de paz ajudaria a criar um novo Oriente Médio. Estamos diante de uma oportunidade de ouro para captar recursos no exterior, investir em infra-estrutura e criar instituições fortes. O momento exige estratégia de acção – coisa que a Autoridade Palestina não tem, pois há muito deixou de lado a causa pública para privilegiar os interesses de poucos. Por isso, considero mais importante dar prioridade ao desenvolvimento económico dos palestinos do que na criação do Estado independente”.
“Não estamos prontos para assumir o nosso próprio Estado, e por uma razão simples: nunca fomos governados por palestinos. A nossa dura realidade é que não aprendemos nada em 38 anos de ocupação israelita. Receio que vamos precisar de mais 20 anos para aprender a cuidar do nosso próprio destino. Antes disso, não acredito na criação do Estado palestino”.
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