Centelha judaica
O escritor americano Mark Twain terá dito uma vez que «não há nada tão eterno como o Judeu». Referia-se à forma como os Judeus, apesar de terem sido dominados e perseguidos por inúmeros impérios, acabaram sempre por lhes resistir e sobreviver, enquanto esses mesmos impérios se extinguiram no remoinho da História.
Mark Twain não se referia aos Marranos, mas bem podia tê-los incluído na sua ideia. Marranos é o nome dado aos descendentes dos Judeus obrigados à conversão ao Catolicismo e que se mantiveram secretamente Judeus após o decreto de Expulsão de 1496. São também chamados Bnei Anussim, “Filhos dos Forçados”.
Poderíamos pensar que os Marranos são curiosidades históricas, realidades (quase míticas) do passado. Mas não, ainda hoje, já no século XXI, mais de 500 anos depois da ordem que os obrigou ao silêncio e a uma vida dupla – Cristãos por fora, Judeus por dentro – ainda existem pessoas que perpetuam essa memória e essas tradições abafadas durante tantos séculos.
Como foi possível a subsistência de rituais como acender as velas antes do Shabbat, jejuar no Dia do Perdão ou não comer comidas fermentadas na Páscoa? Tudo num ambiente de secretismo absoluto, envolvido com o medo de se ser, a qualquer altura momento, descoberto pela temível e cruel Inquisição. E mais, porque se mantiveram secretos mesmo após a extinção da Inquisição (em Portugal deu-se em 1822), da abertura da sociedade a outras religiões, da instauração da democracia e da instituição da liberdade religiosa?
Durante os anos 20 do século passado, houve um esforço notável por parte do capitão Artur Barros Basto para resgatar os milhares de Marranos ainda existentes no Norte de Portugal. A sua missão levou à construção da Sinagoga do Porto e ao estabelecimento de várias comunidades judaicas em várias cidades e vilas do Norte. No entanto, a sua missão foi bruscamente terminada e as comunidades por ele fundadas acabaram por se desagregar. A emigração nos anos 50 e 60 levou muitos para França.
Também em Espanha, especialmente nas ilhas Baleares existem descendentes de Marranos, como os Chuetas, judeus maiorquinos perseguidos após um grande massacre no século XIV, ainda antes da Expulsão dos Judeus de Espanha, em 1492. Nos séculos seguintes, os seus descendentes foram sistematicamente excluídos da vida social das ilhas e “Chueta” passou a ser uma expressão de insulto entre os habitantes locais.
As Diásporas portuguesa e espanhola levaram milhares de judeus e seus descendentes para todo o Mundo, em especial a América Latina. Calcula-se que, actualmente, o Brasil seja o país com maior número de Marranos em todo o Mundo. Serão cerca de 100 mil, especialmente concentrados no sertão do Nordeste. No Peru, várias comunidades subsistiram também e hoje revelam a sua intenção de ingressar no Judaísmo moderno.
Na Índia é a ainda mais incrível história dos Bnei Menashe que desponta. Várias tribos indianas reclamam ser os descendentes de uma das tribos de Judeus exilados na Babilónia há quase 3000 anos e que numa vaga de migrações se estabeleceram nas montanhas do Nordeste da Índia. Aí mantiveram um certo número de tradições judaicas que se foram perpetuando apesar do isolamento extremo. Desde o século XIX, com a chegada repentina de missionários cristãos, a maioria se converteram ao cristianismo. Alguns milhares, no entanto, insistem no seu Judaísmo e resistiram às investidas dos missionários e hoje aproximam-se do Judaísmo moderno.
Na Polónia, após a II Guerra Mundial, alguns milhares de sobreviventes dos campos de concentração que regressaram às suas terras para reclamar as suas casas e bens, foram mortos pelos polacos que entretanto haviam ocupado as propriedades judaicas. Já depois da retirada das tropas nazis. Assim, a maioria dos judeus polacos sobreviventes, decidiram emigrar para Israel ou os Estados Unidos, ou optaram pela ocultação da sua identidade judaica.
Durante várias gerações, cônjuges esconderam um do outro e pais esconderam dos filhos, a sua origem. Como a história dramática de um casal de jovens neo-nazis. Casarem-se e tiveram um filho. Entretanto descobrem que os dois são judeus. Numa sexta-feira à noite resolveram convidar os pais para a refeição de Shabbat. A família não aceitou bem a mudança. Aos poucos deixaram para trás o neo-nazismo e juntaram-se à comunidade judaica ortodoxa de Varsóvia. Hoje, os dois são membros activos dessa comunidade. Alguns dos irmãos do rapaz continuam a ser neo-nazis.
Voltando ao caso português. Na última semana, quinze pessoas – a maioria descendentes de Marranos – terminaram o processo de conversão/retorno ao Judaísmo no Tribunal Rabínico de Jerusalém. Vinham tendo aulas de conversão junto da comunidade judaica do Porto. Entre eles, vários casais que, após a conclusão do processo de conversão, se casaram segundo o rito judaico, na Grande Sinagoga de Jerusalém.
É impossível ter consciência plena do esforço e da motivação destas pessoas. Mas são todas, para lá de curiosidades antropológicas, exemplos vivos e actuais da eternidade da “centelha judaica”.
Este artigo foi publicado por GC em http://claramente.blogs.sapo.pt/
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