24.10.06

Desvendando Munique








A Taça do Mundo na Alemanha mudou a história?

Em 2006, a cidade de Munique viveu dias fantásticos com a realização do primeiro jogo da Taça do Mundo da Alemanha. Um estádio monumental – o Allianz Arena - que custou quase 400 milhões de dólares serviu de cenário para a apresentação da equipa da casa. Já o antigo estádio olímpico, aquele do atentado aos atletas israelitas, em 1972, prudentemente esqueceu o desporto e abriu os seus portões para um deslumbrante concerto ao ar livre, com três orquestras sinfónicas, 400 músicos, show de luzes e fogos de artifício, e a participação do maestro Zubin Mehta e do tenor Plácido Domingo. O slogan oficial da competição traduziu o clima da festa: “A Time to Make Friends” ou, na versão latina, “Tempo de fazer amigos”. Até um concurso para saber o que os entusiastas de todas as partes do mundo associavam à Alemanha, o país anfitrião da Taça, foi lançado pela rede internacional de rádio e televisão Deutsche Welle (DW-World).
Diante dos brilhantes resultados em matéria de organização e marketing institucional, pode parecer indelicado evocar factos poucos recomendáveis sobre a encantadora cidade de Munique – ou München, para os íntimos, - após um evento desportivo tão simpático e que encantou milhões de adeptos em todo o mundo. Mas, por outro lado é justo compor um registro de ocorrências que - ao longo do tempo e no ambiente que se mostrou fértil e propício da Baviera - prosperaram e resultaram em ruína e tragédia para uma minoria de pacatos cidadãos. O escocês Kevin Macdonald, autor do premiado documentário “One Day in September” (Oscar da categoria, em 2000), que aborda o sequestro e a morte, por um comando terrorista, dos 11 atletas israelitas que participavam das Olimpíadas de Munique, em 1972, justificou, de maneira contundente, o motivo que o levou a realizar o filme: “De alguma forma o Massacre de Munique foi uma transgressão inominável, a destruição de um ideal de paz e fraternidade”. O seu produtor, John Battsek, foi mais adiante: “A investigação para o documentário revelou uma história de mistério, conspiração, tragédia, inépcia e terror”.
Frente a tal enunciado, comecemos com a performance do Comité Olímpico Internacional. A entidade era presidida, em 1972, pelo norte-americano Avery Brundage (1887-1975), o mesmo que nas Olimpíadas Nazistas de Berlim, em 1936, havia rejeitado a proposta dos Estados Unidos de boicotarem a competição, porque os atletas judeus alemães estavam proibidos de participar. Brundage tinha sido presidente do Comité Olímpico dos Estados Unidos, era um entusiasta do regime nazista e amigo de Hitler. Nascido em Detroit, esse engenheiro e desportista que foi o único norte-americano a presidir ao Comité Olímpico Internacional, convenceu os seus patrícios a participarem da competição e, em troca, a sua empresa de engenharia recebeu um cheque em branco para construir a embaixada da Alemanha em Whashington. Três décadas depois, numa dessas coincidências lamentáveis, esse mesmo Brundage, na cerimónia realizada no dia seguinte à tragédia, preferiu calar-se sobre o assassinato dos atletas israelitas. No seu discurso apenas exaltou o espírito dos Jogos e anunciou que a festa não ia parar.
Passados exactamente 27 anos desta olimpíada do terror, uma autobiografia intitulada “Palestine: From Jerusalém to Munich” revela novos detalhes do ataque à Vila Olímpica. Publicada na França, em 1999, o seu autor é Mohammed Oudeh (Abu Daoud), um dos mentores confessos do Massacre de Munique. No livro ele admite que o Setembro Negro era o nome-fantasia adoptado pelos membros do Fatah, quando dos ataques terroristas. Daound também descreve como Arafat e o actual presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas (Abu Mazen) - o homem encarregado de levantar os recursos para a viabilização da operação – desejaram-lhe boa sorte e o beijaram no momento em que ele finalizou os preparativos para o ataque, que vitimou um total de 17 pessoas.
Sobre Mahmoud Abbas, vale reproduzir um item do seu histórico escolar: em 1982, dez anos depois do atentado terrorista, ele concluiu os seus estudos na Universidade de Moscovo, obtendo uma boa classificação em História Oriental. A tese do seu doutorado questiona e nega os números do Holocausto e inclui uma fantástica aliança entre nazistas e líderes sionistas, durante a II Guerra Mundial, com o intuito de exterminar todos os judeus da Europa. A fantasia mal-intencionada travestida de “investigação histórica” leva o nome de “O Outro Lado: As secretas relações entre o Nazismo e o Movimento Sionista”.
Ainda acerca do líder palestino, a Organização israelita dos Direitos Humanos Shurat Hadin Israel Law Center - que dá assistência jurídica aos judeus vítimas de actos terroristas e os representa nos fóruns internacionais - enviou cartas ao presidente Bush e ao Chanceler Gerhard Schroeder, em 2003, conclamando as autoridades norte-americanas e alemãs a abrirem uma investigação, nos seus territórios, contra Mahmoud Abbas por suas comprovadas ligações com o Setembro Negro, principalmente na função de recolhedor de fundos para prover actos terroristas, como o de Munique. A acção teria consistência jurídica já que um dos atletas assassinados também tinha cidadania norte-americana e um dos mortos era um polícia alemão.
No ano passado, o jornalista Ian Jonhson, do Wall Street Journal, consultando arquivos oficias nos Estados Unidos, Inglaterra, Suíça e Alemanha, afirmou que a cidade de Munique, há várias décadas, havia se tornado o centro irradiador de uma organização radical denominada Fraternidade Muçulmana (Muslim Brotherhood), banida do Egipto por Gamal Abdel Nasser, nos anos 50. Quase todos os acusados de actos terroristas tinham, passado por Munique e pelo seu centro islâmico. Essa intimidade entre a cidade alemã e os muçulmanos, segundo Jonhson, tinha-se iniciado na época de Hitler, depois da invasão à União Soviética, quando o regime nazista deu uma guinada das mais espertas, transformando um milhão de soldados muçulmanos dos países da Cortina de Ferro, aprisionados em combate, em aliados e amigos do Reich. Inclusive uma dessas brigadas formada por muçulmanos foi destacada para a Polónia, onde teve participação activa na aniquilação do Gueto de Varsóvia, em 1943.
Depois da guerra, esses combatentes nazistas instalaram-se em Munique e acolheram a organização Fraternidade Muçulmana de braços abertos, sendo responsáveis pela fundação, em 1958, do Centro Islâmico de Munique. Um ano depois, participantes do Congresso Muçulmano Europeu selaram o pacto de tornar a capital da Baviera um pólo de convergência para todos os muçulmanos residentes na Europa. Um dos clérigos (imam) mais actuantes do Centro Islâmico de Munique foi Nurredin N. Nammangani, nascido no Uzbakistão e que serviu nas fileiras de Hitler, mais especificamente na organização paramilitar SS. Durante décadas (faleceu na Turquia em 2002) ele mesclou religião e anti-semitismo nas suas prédicas às centenas de colegiais e universitários muçulmanos de várias partes da Europa. Outros membros da cúpula do Centro de Munique citados na reportagem também tiveram ligações documentadas com os nazistas, de acordo com a pesquisa do jornalista norte-americano.
Para o historiador alemão Stefan Meining, o Centro Islâmico de Munique está na base de uma ampla rede que se ramificou silenciosamente pelo resto do mundo, a partir do fim da II Grande Guerra, difundindo um radicalismo e uma postura a favor da “guerra santa”, que simplesmente não existiam antes da II Guerra Mundial. O encontro da teoria nazista com o fundamentalismo religioso da Fraternidade Muçulmana foi o responsável pelo nascimento da figura híbrida e aterradora do terrorismo moderno, uma das grandes tormentas que o mundo ocidental tem enfrentado. “Se quer entender a estrutura política do Islão, tem que se debruçar sobre o que aconteceu em Munique”, alerta o historiador.
Outro estudioso alemão, o cientista político Matthias Kuntzel, também relaciona a Fraternidade Muçulmana com as ideologias extremistas da jihad (guerra santa) dos grupos Fatah, Hamas, Hizbollah e Al-Qaeda. No seu trabalho intitulado “O Islamismo anti-semita e as suas origens nazistas”, Kuntzel destaca que até 1930 a doutrina islâmica tradicional não pregava o ódio aos judeus e nem falava em guerra santa. Posteriormente, a doutrina absorveu o marketing da propaganda nazista e anti-semita europeia, recebeu o apoio financeiro e estratégico de Hitler - que financiou as lideranças islâmicas ligadas à Fraternidade Muçulmana (fundada em 1920) - e promoveu actos de terror, morte e perseguição aos judeus no Egipto e na Palestina, ainda sob o Mandato Britânico. Slogans do tipo “Judeus fora da Palestina e do Egipto” e “Morte aos Judeus” eram parte do arsenal de intimidação da Fraternidade que, após ser expulsa do Egipto, transferiu-se para a capital da Baviera.
Em Setembro de 2005, o Papa Bento XVI – que doutorou-se em Teologia pela Universidade de Munique - coordenou um seminário privado na sua residência de verão, em Castelgandolfo, com religiosos e estudiosos do Islamismo. O encontro gerou polémica porque o jesuíta norte-americano Joseph Fessio, declarou, em entrevista, meses depois, que o papa tinha dito que o Islamismo e a modernidade (democracia) não eram conciliáveis. Imediatamente, dois outros participantes do seminário se apressaram em desmentir a afirmação, declarando que não foi bem isso que o Papa quis dizer. Segundo estas fontes, o Papa havia considerado a conciliação do Islamismo com a modernidade muito difícil, mas não impossível. É importante lembrar que o actual papa foi Arcebispo de Munique entre 1977 e 1981, e como tal fica difícil imaginar que não tenha tido contacto com a liderança da Fraternidade Muçulmana do Centro Islâmico ou que não soubesse das actividades que lá ocorriam. Para o jornalista do Ásia Times, Spengler, pode parecer estranho que o Papa necessite de “sussurrar” quando demonstra concordância com a opinião dos muçulmanos tradicionais de que a profecia do Corão é imutável e que portanto não pode ser reformada. Diante disso, Spengler deduz que, se o Islamismo é incapaz de mudar, estamos todos caminhando para uma guerra de civilizações.
Para o subdirector do Instituto de Pesquisa de Anti-terrorismo de Washington, Lorenzo Vidini, foi a partir de Munique que os muçulmanos conquistaram a Europa. O modelo pioneiro implantado em Munique, com uma rede de mesquitas, centros de apoio, grupos de estudos e organizações sociais espalharam-se pelo continente. “Enquanto resguardados por quatro paredes eles incitavam à guerra; para o mundo exterior o discurso era outro, com retórica moderada, e dessa forma, a Fraternidade ganhou força e aceitação política na Alemanha”. Hoje, o país tem 3,5 milhões de muçulmanos e estatísticas dão conta que, anualmente, 800 alemães se convertem ao Islamismo. Neste crescendo populacional também se inclui a comunidade judaica que, surpreendentemente, já atinge a cifra de 100 mil pessoas, constituindo-se a terceira maior da Europa. A queda do Muro de Berlim, em 1989, e a derrocada da União Soviética, em 1991, estimularam o êxodo.Com as fronteiras abertas, os judeus do Leste Europeu esqueceram a cautela e instalaram-se na Alemanha, com uma sem-cerimónia que tem provocado arrepios a muitos historiadores e sobreviventes do Holocausto. Mas, não em todos. Um exemplo é o professor israelita Menahem Ben-Sasson, ex-reitor da Hebrew University e que dá aulas na Universidade de Munique. Especialista em História Judaica da época medieval islâmica, ele participa do programa promovido pela Allianz Group, uma das maiores seguradoras do mundo, com sede em Munique. O projecto patrocina o “Curso de Estudos Islâmicos e Judaicos”, alternando professores judeus e muçulmanos, a cada semestre. Ben-Sassom conta que alguns colegas o criticaram quando ele resolveu aceitar o convite. Entretanto, o professor diz que se sente bem à vontade no seu trabalho e que, inclusive, usa a kipá normalmente quando transita pelas ruas da cidade. Um avanço de tirar o chapéu, considerando que há pouco mais de sessenta anos, ser judeu em Munique era dispor de um passaporte para o inferno. Foi nos seus arredores que funcionou o primeiro campo de concentração da Alemanha – Dachau – onde os judeus e outras minorias foram cobaias de abomináveis experiências ditas científicas.

Escrito por: Sheila Sacks.
Publicado Originalmente no "Nosso Jornal - Rio"Publicado no site em: 16/10/2006