21.9.09

Cripto-judeus em Portugal

Uma visita à terra dos cripto-judeus em Portugal

***por Dr. Elias Knobel


Uma viagem, um congresso, uma experiência, muitas emoções. há muito queria conhecer mais de perto a tão falada comunidade secreta de Belmonte, em Portugal.


Tomei conhecimento da tal comunidade há mais de 10 anos, após uma reportagem na TV portuguesa que assisti em Lisboa e através dos artigos e livros da querida Anita Novinsky. Finalmente, ia poder saciar minha curiosidade e, logo depois de minhas palestras no Congresso Europeu de Medicina Intensiva, realizado em 2008, em Lisboa, fomos, minha mulher, Betty, e eu, em direção a Belmonte, uma cidade da Beira-Baixa, no norte de Portugal. Durante essa viagem, sempre que visitávamos locais históricos, éramos respaldados por informações obtidas em livros de historiadores, o que a tornou ainda mais interessante e emocionante.
A cidade de Belmonte é reconhecida como um marco importante na história dos judeus que viveram na Península Ibérica. Este reconhecimento se deve a um engenheiro metalúrgico, judeu polonês, Samuel Schwarz, que, em 1917, foi para lá a trabalho e descobriu, após incessantes e curiosas investigações, que naquela região existia uma comunidade secreta, que ainda conservava certos costumes judaicos, tais como acender velas no jantar da família, às sextas-feiras, e jejuar uma vez por ano. Eram os cripto-judeus de Belmonte que ainda viviam como uma comunidade fechada. Mesmo com o fim da Inquisição (1536 a 1821), não sabiam que era o judaísmo a religião que seguiam nem que esta era praticada em segredo, sem sacerdotes ou livros, e oralmente transmitida, de geração em geração. Em 1925, Samuel Schwarz encontra, numa antiga sinagoga da região de Belmonte, uma pedra de 1297 com a inscrição de um versículo bíblico. Naquele mesmo ano, publica o livro "Os cristãos-novos em Portugal no século 20", como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, à qual pertencia. A obra, que teve uma versão em inglês, divulga mundo afora a comunidade cripto-judaica de Belmonte.
No caminho para a tão aguardada Belmonte, tivemos a primeira surpresa ao nos depararmos com uma cidade chamada Tomar. A visita a essa cidade não estava inicialmente planejada, mas aproveitamos o momento para conhecê-la, pois sabíamos da existência de um monumento tombado pela UNESCO, o Convento dos Templários. Caminhando pelas ruelas dessa pequena cidade, vimos, para nossa surpresa, uma placa indicando a direção de uma sinagoga e, atraídos pela inesperada curiosidade, para lá nos dirigimos.Uma pequena casa utilizada, até pouco tempo antes, para fins comerciais, constituía a sinagoga de Tomar, provavelmente a mais antiga de estilo gótico em Portugal. Foi uma sensação agradável, acompanhada de uma enorme emoção, visitar essa sinagoga, que foi adquirida e recuperada pelo mesmo engenheiro Samuel Schwarz. Um ambiente pequeno e discreto onde se destacavam quatro colunas, que representavam uma homenagem às quatro matriarcas de Israel: Sara, Rebeca, Raquel e Lia. Alguns poucos turistas ouviam as ensaiadas explicações dadas por uma jovem que, aparentemente, nada tinha a ver com o significado da antiga sinagoga.
Logo depois da interessante visita, continuamos nosso percurso em direção a Belmonte e nos hospedamos numa pitoresca pousada, situada nos altos de uma montanha, de onde se podia avistar toda a região da Serra da Estrela. Chegamos bem ao entardecer e o pôr-do-sol visto da varanda de nosso quarto era esplêndido. De lá também podíamos observar uma pequena cidade iluminada, chamada Covilhã, que tem um significado especial na história dos cripto-judeus da região.
No dia seguinte, visitamos as ruelas da judiaria de Belmonte e nos dirigimos à sinagoga Beit Eliahu, onde encontramos o Sr. Henriques. Este senhor de meia-idade contou-nos que sua família era tradicional de Belmonte, desde os tempos da Idade Média. A antiga residência da família ficava bem em frente à sinagoga. Cruzamos a pacata ruela, de onde se podia observar o quintal da pequena casa. Naquele momento, tive a sensação de ter voltado no tempo, para os idos do século 16, e estar observando os "fiscais da fé" da Inquisição fazerem a habitual inspeção para verificar se os judeus convertidos, os cristãos-novos, ainda continuavam a praticar a sua "antiga" fé, o que era motivo de severíssima punição. Ficavam satisfeitos ao ver embutidos pendurados em varais nos pátios, significando que os habitantes daquela casa consumiam carne de porco. Mas os cripto-judeus, na verdade, utilizavam embutidos que não continham porco, e sim continham outros produtos que hoje são conhecidos como alheiras, não violando, assim a Lei judaica.
Retornando à sinagoga, continuamos a conversar com o Sr. Henriques e soubemos que a população judaica de Belmonte é hoje de aproximadamente 120 pessoas. Eles costumam comparecer à sinagoga apenas nas Grandes Festas, quando é contratado um rabino que geralmente vem da cidade do Porto. É uma bonita sinagoga, com capacidade aproximada para 100 pessoas.
Bem próximo a este local visitamos o mausoléu da família Cabral, com destaque ao descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral, que, provavelmente, era cristão-novo, assim como seu genro, Fernando de Noronha. A poucos quarteirões estava localizado o Museu Judaico de Belmonte, que nos impressionou pela lista de pessoas afixada numa imensa parede e que foram vítimas da Inquisição. Entre nomes os mais variados, que se confundiam com os conhecidos e tradicionais de famílias portuguesas e brasileiras, lá estavam relacionados Azevedos, Pereiras, Mendes, Rodrigues, Soares, Silva e tantos outros, de todas as idades, que foram sacrificados pela intolerância e ignorância.
Destaca-se nesse museu o nome de Artur Carlos de Barros Basto, um capitão do exército português, que, posteriormente, adotou o nome de Ben-Rosh. Nascido no Porto em 1887, educado dentro do cristianismo, ao tomar conhecimento na juventude de pertencer a uma família de conversos de Amarante (seu avô era ainda um membro praticante da comunidade), inicia sua aproximação ao judaísmo.Para ser aceito pela comunidade judaica de Lisboa como membro de pleno direito, estuda o hebraico e os textos judaicos. Em seguida, desloca-se ao Marrocos onde recebe instrução religiosa, e, após ser circuncidado, adota o nome de Abraham Israel Ben-Rosh. De volta a Portugal, Barros Basto luta incessantemente para resgatar o judaísmo dos cripto-judeus, que então viviam na região de Trás-os-Montes e da Beira Interior. Percorria o interior de Portugal levantando informações e fazendo contatos, com o objetivo de salvaguardar a identidade dos cripto-judeus ao mesmo tempo que ambicionava fazê-los voltar para o judaísmo tradicional.
Muito próximo a Belmonte, passamos por uma cidadezinha denominada Mantegas, onde também há documentos comprovando a presença dos cripto-judeus, e, logo depois, percorremos a bela Serra da Estrela, onde nos deliciamos com imagens de natureza e paisagens magníficas. No final da Serra, retornando para Belmonte, passamos por Covilhã. Nesta cidade e região existiu uma comunidade constituída por comerciantes e mercadores cripto-judeus, que tiveram grande sucesso econômico e preservaram, com rigor, a religião e os costumes judaicos. Dentre estes, destacavam-se as famílias com o sobrenome Sousa (com "s" e não "z"), todos de origem judaica. Era de Covilhã aquele que foi o primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, um judeu praticante.
Deixamos Belmonte e passamos ao lado de Guarda, uma cidade rica em história judaica, onde existe uma judiaria muito conhecida. Fomos para Ciudad Rodrigo, situada na Espanha, muito próximo à fronteira com Portugal. Encontram-se vestígios da presença judaica na região, que foi trajeto comum para a retirada dos judeus expulsos pelos reis católicos Fernando e Isabel, em 1492, logo após a reconquista de Granada. Contam os historiadores que, nessa retirada, os judeus armavam tendas nesse vale, junto a Ciudad Rodrigo, tendo muitos adotado o sobrenome Valle por este motivo. Bem próximo, está um vilarejo na Serra de França, denominado La Alberca, com uma arquitetura peculiar e que foi refúgio de judeus e mouros, que deram ao local características históricas e culturais peculiares. De lá, visitamos Salamanca, com sua esplêndida universidade, e Cáceres, onde, a exemplo de outras cidades, encontramos ruas onde viveram os judeus antes de sua expulsão da Espanha.
Retornando novamente para Portugal, passamos junto à cidade de Valência de Alcântara, onde também há resquícios de uma sinagoga de estilo gótico semelhante à de Tomar. Já em Portugal, ficamos hospedados em Marvão, uma minúscula cidade com casinhas brancas, no topo de uma montanha, de onde se tem a visão de uma paisagem linda e inusitada, podendo avistar-se toda a região. No meio do caminho em direção a Évora, nos deparamos com a cidade Castelo de Vide. Confesso que não conhecia nem de nome esta cidade e a surpresa foi enorme quando nos deparamos, junto ao centro desta cidadela, com uma judiaria constituída de ruelas íngremes e acentuados aclives e declives, caracterizando provavelmente uma parte da cidade que não devia ser a melhor para se habitar. No meio de todas as pequenas ruelas vimos uma casa de esquina onde ficava a antiga sinagoga local. Estava fechada e, apesar de constar no guia turístico da cidade, infelizmente há longo tempo não estava aberta à visitação, dando a sensação de abandono.
De Évora, voltamos para Lisboa, onde fizemos inúmeros passeios. Passamos em frente à antiga sinagoga, que ficava nos fundos de um terreno e era separada da rua por uma grade. Soubemos que durante a Idade Média não era permitido a outras religiões, que não a católica, a construção de locais de oração voltados diretamente para as vias públicas. Bem próximo a esta sinagoga nos defrontamos com a praça Marquês de Pombal, homenagem ao ministro, que, apenas em 1821, decretou o fim da Inquisição em Portugal. Quando passeávamos por uma das principais praças do centro de Lisboa, a do Rossio, lembrei-me da citação de uma das maiores tragédias ocorridas com os cristãos novos numa igreja lá situada, no ano de 1506. Um suposto milagre atraiu milhares de cristãos para esta igreja. Porém, um cristão-novo teve a infelicidade de tentar explicar o fenômeno do milagre como sendo algo natural, mostrando que não havia nada de sobrenatural. Isto desencadeou uma matança comandada por frades, em 19 de abril de 1506, com a participação de um populacho ignorante, e que transformou a região do Rossio em um verdadeiro mar de sangue. (N.R.: Ver Morashá N0 56) Bem próximo ao Rossio, passando pela rua da Prata, chegamos à beira do Rio Tejo. O local foi palco de um dos acontecimentos mais inusitados que ocorreram por ocasião da expulsão dos judeus de Portugal. No fim de 1496, logo depois da assinatura do tratado de matrimônio entre D. Manuel e Isabel, filha dos Reis Católicos de Espanha, é decretada a expulsão dos que não se convertessem ao cristianismo. Até então, D. Manuel evitara tal medida, pois a partida daquela minoria tão necessária à expansão ultramarina representaria um baque econômico e intelectual para Portugal. Na tentativa de convencê-los a ficar e adotar o cristianismo, o rei lhes ofereceu inúmeras vantagens. Mas, preferindo o exílio à conversão, os judeus se prepararam para deixar o país. (N.R.: Ver Morashá N0 56)
Quando D. Manuel, finalmente, escolheu para partida dos judeus o porto de Lisboa, mais de 20 mil para lá rumaram. No entanto, os judeus "ficaram a ver navios". Os que aguardavam o embarque foram "batizados em pé", à força, e, assim, transformados em cristãos. Praticamente nenhum judeu que vivia em Portugal escapou do batismo forçado. Tornaram-se "cristãos novos" e acabaram herdando os preconceitos antes reservados aos judeus. A necessidade fez com que todos aqueles cristãos-novos que não queriam abandonar o judaísmo adotassem o comportamento peculiar ao cripto-judaísmo. Publicamente se comportavam como cristãos, mas em sua casa, entre seus familiares, assumiam uma conduta diferente, mantendo, sempre que possível e em segredo, os ritos e as tradições judaicas. Principalmente por causa de rivalidades econômicas, em pouco tempo, o ódio ao judeu se transferiu para o cristão-novo. Em 1536 a Inquisição foi instalada em Portugal, dando início a um período de terror. Aqueles que persistiam secretamente em sua "fé antiga", em seguir os preceitos da religião judaica, eram presos, castigados com dureza, e torturados ou queimados.
A história dos criptos-judeus de Portugal é uma verdadeira saga, uma luta pela vida e sobrevida, uma a mais na longa e calejada história do povo judeu. Como é possível viver, geração após geração, sob constrangimento, perseguição e intolerância, sem que isso destrua o ser humano? Como foi possível viver duas existências intrinsecamente opostas - uma pública, como cristão, e outra privada, como judeu? Ou seja, como se pode ser cristão por fora e judeu por dentro? É o homem dividido, denominação freqüentemente usada por Anita Novinsky em suas publicações, aquele que teve de desenvolver uma habilidade de aparecer de maneira diferente, conforme o local onde se encontrava. São questões fundamentais inerentes à comunidade cripto-judia que existiu nos séculos passados, em Portugal e Espanha.
Apesar de todas as lições do passado, parece que o ser humano não aprendeu o suficiente; e a perseguição, a intolerância e, enfim, a ignorância, continuam vivas. Pogroms, Holocausto, Inquisição e todas as tentativas de disseminar o ódio e aniquilar o povo judeu foram em vão. Quando um povo mantém com convicção seus verdadeiros princípios e valores, assim como sua tradição, nenhuma arma será suficientemente potente para destruí-lo.

Bibliografia:
Novinsky, Anita, A Inquisição , Editora Brasiliense, 2007 Canelo, David Augusto, Os últimos cripto judeus em Portugal, 3ª ed, 2005, patrocinado pela Câmara Municipal de Belmonte

***Dr. Elias Knobel é médico cardiologista. Diretor Emérito e Fundador do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo

NOTA:
Em Belmonte, existiu a maior comunidade de cripto-judeus portugueses de que se tem notícia que tentou preservar o seu judaísmo durante mais de 450 anos. Em 1991, cerca de uma centena de pessoas submeteram-se a um processo de conversão à ortodoxia judaica.
O Rabino Chefe sefaradi de Israel, Rabino Mordechai Eliyahu, enviou rabinos de Israel para acompanhar o processo. As conversões foram um passo necessário porque, ainda que os cripto-judeus de Belmonte vivessem isolados e tentassem apenas casar entre eles, muito tempo havia decorrido para que se pudesse estar absolutamente seguro acerca da linhagem judaica individual de cada um dos integrantes do grupo. A comunidade funciona, hoje, como uma comunidade judaica ortodoxa plenamente operante.