4.7.06

Novo Antisemitismo?


(Continuação…2)

Sob este prisma, as críticas a Israel são moralmente justificáveis, perfeitamente aceitáveis e legítimas. Não o serão, a meu ver, numa vertente sociológica, e não moral, tal como esta é definida por Max Weber, quando se coloca em causa a existência do próprio estado de Israel. Mas já lá iremos.No entanto, há sérias razões para duvidar que a oposição a Israel se deva exclusivamente às políticas do seu governo face aos palestinianos. A atenção que se volta sobre Israel contrasta de forma gritante com a indiferença passada e presente face a atrocidades cometidas por outros países. A oposição da opinião pública europeia face a Israel deve ser contrastada com o seu silêncio perante continuadas violações dos direitos humanos numa escala significativamente mais elevada praticados, por exemplo, pelas campanhas militares de Slobodan Milosevic no Kosovo e antes na Bósnia. O massacre de mais de seis mil muçulmanos bósnios em Srebrenica, apesar de ter chocado alguns, não motivou manifestações de massas nem levou à “demonização” da Sérvia nem apelos ao boicote de universidades sérvias. Milosevic senta-se agora no banco dos réus em Haia, acusado de crimes de guerra, ao mesmo tempo que a opinião pública europeia, e especialmente a esquerda, permanece maioritariamente indiferente.Outro exemplo pode ser encontrado no brutal esmagamento da revolta dos separatistas muçulmanos na Chechnya por parte da Rússia, que apenas ocasionalmente tem sido mencionada por grupos de defesa dos Direitos Humanos. A Imprensa europeia dedica um espaço mínimo à Chechnya e a opinião pública dá também mostras de pouco interesse.Tanto no caso dos Balcãs como no da Chechnya, o nível da violência e as graves violações dos Direitos Humanos têm sido muito maiores do que aquelas geradas pelo conflito israelo-palestiniano.Então porquê só Israel e não também a Rússia, a Sérvia, ou mesmo a China, a Índia e o Paquistão?Mais uma vez repito que as críticas e condenações não deixam de ser justificadas. Israel não é, e não poderá nunca ser, imune a críticas. Enquanto tudo isto não pode nunca ser encarado como uma justificação dos actos de Israel nos territórios ocupados, a verdade é que levanta sérias questões quanto aos motivos por detrás da imensa onda de hostilidade face a Israel. Acima de tudo, considero fundamental que seja feito um enquadramento global.Uma das respostas possíveis passa pelo antisemitismo, esse fenómeno milenar embrenhado no subconsciente colectivo europeu. A importância da judeuofobia europeia neste processo não pode ser minimizada, ao contrário do que defendem alguns.Acima de tudo, é forçoso acompanhar as morfologias do antisemitismo. Da extrema-direita fascista e ultra-nacionalista, o discurso antisemita, e muitas das suas mitologias, faz agora parte do imaginário do outro lado do espectro político.“O antisemitismo que hoje prevalece não é o mesmo do passado. Nada tem a ver com o racismo que defendia um qualquer ideal nacionalista. Hoje é um antisemitismo em nome dos oprimidos. Não se trata de um antisemitismo racista, mas sim de um antisemitismo ‘anti-racista’”, defendeu Finkelkraut numa conferência recente.O judeu enquanto pária social tem sido objecto de inúmeros tratados, ensaios e romances. A sua caracterização cabe aqui como parte da discussão destas raízes. No livro que acima referi, Jean-Paul Sartre refere-se também a essa condição: “Este é talvez um dos significados de O Julgamento de Kafka, ele próprio um judeu. Tal como o herói deste romance, o Judeu está envolvido num longo julgamento. Ele não conhece os seus juizes, raramente os seus próprios advogados; ele não sabe do que é acusado, mas mesmo assim sabe que é considerado culpado; a sentença final é continuamente adiada – por uma, duas semanas – e ele aproveita estes atrasos para melhorar sua posição em milhares de formas possíveis, mas cada precaução tomada ao acaso empurra ainda mais o espectro da culpa. A sua situação externa pode parecer brilhante, mas o julgamento interminável fá-lo definhar, e por vezes acontece, tal com no romance, que homens o carreguem sob a pretensão de que perdeu o caso, e o assassinam num qualquer baldio dos subúrbios.”Neste debate actual existem duas posições extremadas: os que negam a existência de uma nova forma de antisemitismo e os que consideram antisemitas todas as críticas a Israel. Em pólos opostos, os argumentos deste dois campos falham em ir além da superfície.“A solução do problema não está em bem intencionadas e ritualizadas condenações do racismo e do antisemitismo. Temos de reconhecer o facto de que muitas pessoas com educação superior não reconhecem o ódio aos judeus a não ser quando este lhes é apresentado vestido com um uniforme nazi. O problema é que a saudação ‘heil Hitler’ já não é o principal critério para medir o antisemitismo”, escreveu, em Junho do ano passado, o professor Robert Wistrich, historiador e director do Vidal Sassoon International Center for the Study of Antisemitism, da Universidade Hebraica de Jerusalém.A diferença entre o “velho” e o “novo” antisemitismo é que este hoje já não é institucional, como o foi na Europa durante séculos. Agora apresenta-se, acima de tudo, como uma opinião.As sociedades democráticas ocidentais tendem a acreditar – como matéria probatória da sua própria essência – na obrigatoriedade de aceitar todos os tipos de opinião, ao abrigo dos conceitos de Liberdade de Expressão. Mas será o antisemitismo simplesmente uma opinião? Em Réflexions sur la Question Juive, Sartre responde: “Antisemitismo não se enquadra na categoria de ideias protegidas pelo direito de livre opinião. Na verdade é bem diferente de uma ideia. É antes de mais uma paixão. (…) Longe da experiência produzir esta ‘ideia’ do judeu, é esta que enforma a experiência. Se o judeu não existisse, o antisemita haveria de o inventar.” Mais à frente acrescentaria uma frase emblemática já citada neste blog: “Il ne s’agit pas là d’une opinion mais d’un délit.”Na prática, e em última análise, o antisemitismo é irracional e desafia qualquer enquadramento lógico. Por isso mesmo desisti há muito de entrar em discussões com antisemitas. Não vale a pena. É uma perda de tempo. Como escreveu Jonathan Swift: “É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão.”A discussão – no sentido construtivo do termo – tem de ser feita e mantida com aqueles que recorrem agora ao imaginário e à mitologia antisemita, muitas vezes, acredito, de forma inconsciente e não deliberada.
[Para quem ainda alimente dúvidas sobre a definição da palavra antisemitismo aconselho a leitura do excelente post Anti-semitismo: o que é?, de R.J. Oliveira no Super Flumina; e ainda este no Crónicas Matinais, de Ana Albergaria. Para evitar qualquer tipo de dúvidas, optei há muito por retirar o hífen quando escrevo antisemitismo.]
Não vou aqui abordar a evolução semântica da palavra sionismo (ficará, provavelmente, para posts futuros), mas o facto da sua conotação negativa actual estar totalmente desenraizada do seu contexto não é alheio à “demonização” de Israel e ao mito da incompatibilidade entre a existência de dois estados, livres e independentes. Como escreveu Miriam Greenspan, “a confluência do antisemitismo e do anti-sionismo gerou o complexo híbrido de Intolerância e fanatismo que hoje emerge”.Para demonstrar que uma e outra coisa não são incompatíveis, “Sionista e pró-Palestiniano” foi o título escolhido para uma série de conferências efectuadas no ano passado por um grupo de intelectuais judeus franceses, entre eles o acima citado Alain Finkelkraut e Bernard-Henri Lévy. Concordo com o slogan e adopto por inteiro aquilo que ele pretende encapsular: a existência inequívoca do estado de Israel, defendendo ao mesmo tempo o fim da ocupação e a criação de um estado palestiniano independente e viável. Para os que preferem olhar a realidade através de dicotomias simplistas, esta posição parecerá inconciliável.Mais uma vez, chamo a atenção dos meu leitores para The New Anti-Semitism, um texto notável de Miriam Greenspan, que aqui já citei por várias vezes. A minha posição pessoal identifica-se na totalidade das opiniões por ela expressas.Nesse artigo (ver The New Anti-Semitism), Miriam Greenspan escreve: “Ao abordar a questão israelo-palestiniana, recordo a velha história de três cegos que apalpam um elefante. Aquele que tacteia a tromba diz que é uma cobra. O que sente só a perna diz que é o tronco de uma árvore. O que toca no dorso diz tratar-se de uma parede. Todos partilhamos a ‘cegueira’ da parcialidade mas mesmo assim falamos como se a verdade, toda a única, nos pertencesse. Quantos dos leitores da The Nation também lêem a Jewish Week? Quantos leitores do jornal oficial da Autoridade Palestiniana também lêem o Ha’Aretz? Qualquer um pode encontrar “factos” para apoiar praticamente qualquer posição acerca de Israel e da Palestina. Os factos, eles próprios, são matéria disputada e nem todos somos especialistas académicos em Médio Oriente. O que decidimos acreditar e qual a “linha” a que aderimos depende muito mais das nossas emoções do que gostaríamos de admitir. E essas emoções podem incluir um preconceito consciente ou inconsciente contra judeus, mas também um preconceito consciente ou inconsciente contra árabes. A história das relações israelo-palestiniana será sempre contestada, escrita tanto pelas nossas não-declaradas paixões primitivas como pelo exercício da nossa colecção de “factos” preferidos. Os mitos históricos tendem a ser imutáveis e inflexíveis – não deixando espaço para contradições desconfortáveis. Eles mantém a sua integridade à custa da supressão de outros factos desconcertantes que podem levantar ansiedades sobre se estamos do lado dos ‘bons’ ou dos ‘maus’ – especialmente em áreas onde existem imperativos morais.”A leitura de Miriam Greenspan aplica-se a ambas as partes. Aos dois lados do conflito. Lembrei-me disto quando na semana passada assisti a uma acesa polémica sobre os palestinianos com aspas ou sem aspas (que passou pelo Barnabé, pelo Homem a Dias, pelo Aviz, pelo causa nossa e pelo Avatares de um Desejo). Como escreveu Francisco José Viegas: “Nisto, cairíamos na chamada elucubração adversativa, ou seja: nunca citaríamos um argumento sem que o outro dissesse, logo a seguir, “sim, mas o contrário também existe”, e assim por uma larga eternidade, que é o tempo em que já deveríamos ter concluído essa “discussão despreconceituosa do conflito israelo-palestiniano”, como escreve. Não se pode é, creio eu, invocar o mal de um só lado quando se fala deste assunto.”
Um dos grandes problema de discurso é a colagem, generalizada e indiscriminada, de todos os judeus às políticas de Israel – algo que, honestamente, tenho muitas dificuldades em não designar como antisemitismo. Chamo a atenção para uma boa análise sobre isto mesmo feita no blog Pagan Days, num post intitulado “Generalizações”.À luz disto, o discurso que defende existir uma separação estanque entre justificadas críticas às políticas de Israel e o antisemitismo é demonstrativo, antes de mais, de uma cegueira selectiva.Quando, em 2002, José Saramago comparou Jenin a Auschwitz falou dos “judeus” como executores de um “novo Holocausto”. “Os judeus”, repare-se. Não os militaristas, os “falcões” de Israel, não a direita de Sharon, mas “os judeus”. Todos. Subitamente os judeus são novamente reduzidos a uma caricatura e mergulhados mais uma vez numa iconografia irreflectida, ruinosa e abismal que deveria arrepiar qualquer mente pensante. Mas não. Aparentemente.O socialista alemão August Bebel descreveu um dia o antisemitismo como “o socialismo dos tolos”. Não nos podemos esquecer que antes dos comunistas, nas mentes primaristas, eram os judeus quem “comia criancinhas ao pequeno almoço”. E foi assim durante séculos. Mas o que fazer então das críticas, por mais legítimas que sejam, que abraçam os “eternos” mitos propagados há séculos pelos antisemitas?
Este foi o segundo artigo