17.5.06

No Egipto, as faces ocultas do Sinai não escondem mais a revolta

'Três cidades balneárias da parte egípcia do Sinai, ao sul de Israel, foram alvos de atentados recentes. Muitos apontam para a Al Qaeda, mas estes podem ter sido cometidos por grupos locais de beduínos, numa área que sofre repressão do governo egípcio, onde a população está cada vez mais revoltada.

Cécile Hennion enviada especial a El-Arich, Sinai do Norte, Egipto

Um centro turístico mundialmente procurado e um local de veraneio até recentemente privilegiado pelos israelenses, teria o Sinai se tornado um baluarte da jihad, a "guerra santa" islâmica? Para o Estado judeu, esta é daqui para frente uma certeza, e os seus súditos vêm sendo fortemente dissuadidos de desfrutar suas férias neste lugar. Os atentados de Dahab - 23 mortos em 24 de abril -, que foram precedidos por aqueles de Taba - 34 mortos em 7 de outubro de 2004 -, e de Charm el-Cheikh - ao menos 70 mortos em 23 de julho de 2005 - parecem ser praticamente idênticos aos da Al QaedaEm cada um deles, três carros explodiram simultaneamente. Em dezembro de 2005, o comando israelense encarregado da luta contra o terrorismo explicitou sua posição: "O Sinai é uma região onde atuam três tipos de organizações terroristas: células da Al Qaeda, células vinculadas a organizações palestinas e células locais de islâmicos egípcios que recrutam seus membros entre beduínos do Sinai".A península egípcia possui um tipo de relevo ideal para todas as atividades ilegais: montanhas de cumes vertiginosos, desfiladeiros e penhascos, grutas e vales profundos. Muitos foram os viajantes que se apaixonaram por essas paisagens lunares. "O palco das grandes cenas descritas no Êxodo", escreveu (o romancista francês) Alexandre Dumas em 1830. "Diante desta natureza muda, nua e desolada, onde nenhuma vegetação consegue brotar entre as rochas estéreis, os israelitas tiveram de entender que eles não poderiam contar com nenhuma ajuda a não ser do céu, e nenhuma esperança para nutrir a não ser em Deus".Até hoje, nessas terras ingratas, Deus continua sendo a principal esperança dos habitantes, dos beduínos que, na sua maioria, se tornaram sedentários. Para o governo egípcio, está fora de questão tolerar a presença da Al Qaeda aqui, mesmo se ele acaba de reconhecer a presença de jihadistas no Sinai. Os atentados são obras "de bandos de beduínos terroristas" que precisam ser erradicados.O general egípcio Yehya Agami é um profundo conhecedor da região. Em 1973, ele dirigia uma unidade de elite e se gaba até hoje de ter matado o último israelense no Sinai, meia-hora antes do cessar fogo. "Os beduínos não são confiáveis", afirma. Segundo o clichê, eles nada mais são que bandidos, corruptíveis à vontade. "Em 1973, o comando me pedira para incorporar dois deles ao meu regimento, por serem supostamente 'de confiança'", conta o general. "Eles me pediram para esperar por eles por dez minutos. Até hoje estou esperando! Antes que o Estado retire as minas e limpe o Sinai", prossegue, "os beduínos armazenaram armas e explosivos. Eles são desconfiados".O Sinai conserva até hoje as cicatrizes das guerras entre Israel e o Egito de 1967 e 1973, e ainda da ocupação israelense que durou até 1982. Nele, os despojos de cinco soldados egípcios, mortos em 1967, ainda foram encontrados em 2005. Além disso, as beduínas ainda se lembram de ter estendido sua roupa por muito tempo entre os canhões enferrujados de tanques abandonados."Quando eles enfrentam problemas", prossegue o general, "eles sabem como passar a fronteira para se refugiar em Israel. Os chefes das tribos, por sua vez, procuram cultivar boas relações com o governo egípcio e podem ser considerados como agentes do Cairo. Essa gente, que quer apenas viver na tranqüilidade, é capaz de qualquer coisa por um pouco de dinheiro. A sua situação econômica, deplorável, baseia-se em parte na cultura das drogas".Em todo caso, Mohamed Abou Manoum, o xeique de Bir Lehfen, é a prova viva de que a cultura beduína permanece forte. Proprietário da maior casa da aldeia, o homem dorme do lado de fora, em frente à sua porta, apesar das noites glaciais. O velho Wafi, por sua vez, pertence à tribo dos 4.000 beduínos que permaneceram nômades. A sua "casa de cabelos" é uma barraca de pele de carneiro, coberta por plantas peludas. Desde que "a vida se tornou cara demais", ele vendeu seus dromedários e sobrevive da criação de cabras. Ao recordar-se das camelas, o seu rosto burilado se ilumina: "Quando colhido ainda morno, na mama, o seu leite é um néctar delicioso que torna qualquer um muito forte. Os que o bebem podem rasgar um ser humano com as suas próprias mãos! Certa vez, vinte anos atrás", prossegue, "alguns estrangeiros me pediram leite de camela. Os pobres ignorantes! Eu só tinha macho!""O ganha-pão é da conta de Deus", filosofa Aid Attiya. Originário de Nuweba, este homem, com as suas pálpebras escurecidas de khol (cosmético), parece ter bem mais do que seus 65 anos. Desde os atentados de Taba e de Charm el-Cheikh, a renda dos beduínos do Sul - os safáris turísticos - periclitou: hoje é preciso obter uma autorização prévia da polícia, enfrentar a multiplicação das barragens nas estradas, e acomodar-se com a proibição de dormir no deserto. "Um drama econômico", suspira o idoso, "mas nós temos os nossos macetes para fazer entrar quem nós queremos, durante o tempo que nós queremos". Inclusive jihadistas? É possível. A operação não é nem um pouco complicada.Temos um encontro marcado numa estrada, antes de uma barragem de polícia. Três dromedários estão aguardando por nós. Uma curta noite foi suficiente para a tribo organizar uma caravana para nós, a qual inclui até mesmo um "chef" de cozinha. Ao ser indagado sobre certa fonte de renda mais rentável, ligada às culturas ilícitas, Aid entra em pânico: "Se eu levar vocês até lá, os cultivadores me matarão, matarão vocês e espalharão nossas cinzas no deserto! De qualquer forma, aposto um bilhão de dólares que vocês não encontrarão um pé de bango [maconha] sequer a dezenas de quilômetros nos arredores". Uma aposta perdida de antemão.Em Dahab, uma cidade balneária freqüentada pelos "hippies-tecno", o bango é negociado em todas as esquinas. Ele é cultivado nos wadis encaixados (vale no fundo de um cânion), onde a polícia promove regularmente operações de erradicação. O general Ahmed Fouly, um antigo guarda-costas do presidente Anuar Al-Sadat (1918-1981), jamais se esquecerá da sua turnê junto com a brigada anti-drogas, em 1996. "Os campos eram situados no meio do nada", conta ele, erguendo uma foto dele, sorridente, posando no meio de uma plantação de papoulas. "Apenas os helicópteros têm acesso a esses lugares". O sucesso não é garantido. Em 24 de novembro de 2004, um helicóptero da brigada teria sido abatido a tiros no monte Lebni.Os beduínos sabem onde estão esses campos mas, para manter a paz entre tribos, os fora-da-lei são ignorados. Muitos fumam e vendem maconha, mas ninguém se arrisca a mexer com os chefões das montanhas. Levar um estrangeiro para mostrar-lhe as culturas é um ato passível da pena de morte.Isolados nos seus vales encaixados, os cultivadores alimentam-se, entre outros, de cegonhas. As numerosas cabeças de pássaro espalhadas pelo chão comprovam que a sua pontaria é precisa. Aid Attiya acabará concordando em nos mostrar, de longe, campos em contrabaixo do Wadi Watir. É claro, também se aproveitam dessas zonas incontroláveis os traficantes de armas e de mulheres imigrantes, chinesas ou russas, que "passaram" de Israel para o Egito com ajuda de outros beduínos nômades, através do deserto do Neguev.O fuzil pertence à cultura tribal. Três anos atrás, a agressão de uma mulher da tribo Azazma por membros da tribo Taíha provocou várias mortes e a fuga dos Azazma para Israel. Nakhil, no coração do Sinai, conta 5.000 habitantes e dois motoristas de táxi: Hassan e Akram. Por alguma razão, da qual ninguém se lembra mais, esses dois alimentam um pelo outro um ódio mortal. Hassan nunca anda com o seu táxi sem os seus três filhos e seu fuzil. Nos vales dos arredores ressoam regularmente disparos de armas.O único hotel de Nakhil, o Charq al-Awsat, é reservado a uma clientelaespecial: príncipes árabes e outros riquíssimos do Golfo vêm até aqui para caçar a raposa, a gazela, a lebre e até mesmo a coruja. É também aqui que foram desmanteladas duas células islâmicas que freqüentavam a mesquita Tawahid. "A presença de salafistas [seita islâmica fundamentalista] é inegável", reconhece o general Agami. "Eles se escondem no inexpugnável 'djebel' [área montanhosa] de Halal e em Maghara. São árabes de El-Arich que os beduínos ajudam em troca de dinheiro".Segundo Achraf Ayoub, um candidato derrotado do partido Tagammou (esquerda de tendência marxista) nas mais recentes eleições legislativas, "esses grupos aproveitaram-se da situação na Palestina, no início da segunda Intifada. Sob o pretexto de prestar apoio aos palestinos, eles foram difundindo pregações cada vez mais radicais. O salafismo propagou-se na cidade". Um grupo com o qual esta reportagem entrou em contato se recusará a falar a esse respeito.El-Arich, uma cidade mercantil de 100.000 habitantes na ribanceira do mar Mediterrâneo, é a capital do Sinai do Norte. Situada perto de Rafah, a cidade que faz fronteira com Gaza, ela possui uma identidade mais otomana do que egípcia. Muitas das famílias ali instaladas reivindicam antepassados turcos e bósnios. Nela, os palestinos, refugiados de 1948, são numerosos. Os outros reivindicam a nacionalidade egípcia. Em 1968, no momento em que o general israelense Moshé Dayan (1915-1981) lhes "oferecia" a independência, o xeique Salem Al-Herch lhe teria respondido: "Vocês são ocupantes, vocês não possuem nem um grão de areia sequer do Sinai. Esta terra é egípcia".Hoje, segundo Achraf Ayoub, o governo trata a península "de maneira racista": "Nós nos recusamos a ser os Curdos do Egito! [O presidente] Moubarak tirou proveito do Sul, nele construindo hotéis e palácios, principalmente em Charm el-Cheikh. Mas ele submete o Norte à discriminação. A densidade da população não é superior a 2 habitantes por quilômetro quadrado, mas o desemprego atinge entre 25% e 30% dentre nós. Nós não temos o direito de possuir nossas terras. O Sinai e os seus poços pertencem ao governo. Não existe uma única universidade sequer. Nós estamos desprovidos de tudo, inclusive do maisimportante: a água".A península vem sendo assolada pela seca já faz 12 anos. El-Arich só recebe água potável durante uma hora por dia. No resto do tempo, a água é salgada. Na entrada do bairro de Sagha, uma mangueira sai da parede da loja do sapateiro e permanece dependurada. Hagg Idriss fica vigiando ali durante o dia inteiro: quando gotas começam a sair do cano, alerta geral: "Tragam todos suas vasilhas! Tragam todos suas vasilhas!", grita."Nós vivemos assim como animais", vocifera. "Os nossos filhos se lavam com um copinho. Na mesquita, não há água para as nossas abluções. A mangueira pode permanecer seca por duas semanas". Segundo o doutor Mamdouh Gouda, um médico que atua no maior hospital do Sinai, "O número de doentes no Sinai do Norte é duas vezes maior do que em qualquer outro lugar do país. Os bebês nascem doentes. 70% dos meus pacientes sofrem de cálculos e de insuficiência renal. Isso exige tratamentos fortes, incompatíveis com as gravidezes. Eu fui obrigado a prescrever abortos - um drama em nossa sociedade".As frustrações da população de El-Arich acabaram se transformando em cólera contra a menina dos olhos da economia egípcia, a Sinai Ciment, construída a 60 km de lá. Esta usina ultra-moderno de cimento emprega 3.500 pessoas - todas vindas do continente - e dispõe do seu próprio sistema de água potável ao qual Bagdad, o vilarejo ao lado, não tem direito."Nós somos construtores de paz", declara Hassan Rateb, o patrão-acionista (15%), que também vem a ser um grande amigo de Gamal Moubarak, o filho do presidente. "Nós queremos criar uma vida nobre no Sinai, desenvolvendo-o". Hassan Rateb é também proprietário de Sama El-Arich, uma região de vocação turística. Ele promete construir uma universidade. Em El-Arich, ninguém acredita nisso. A fábrica é acusada de vender seu cimento branco para Israel, o que o seu proprietário nega.Desde os atentados de Taba, a cólera exacerbou-se e alveja o governo. Em El-Arich e em Nakhil, as forças de polícia prenderam 3.500 pessoas, deixando as famílias por vários meses sem notícias dos seus parentes. Os interrogatórios e as torturas - em presença da CIA, segundo uma fonte dos serviços de segurança do Sinai - são descritos em todo o seu horror, nos menores detalhes, pelas inúmeras testemunhas que foram libertadas."Os atentados de Taba talvez tenham sido perpetrados por islâmicos", estima o general Fouly. "O fenômeno foi alimentado por todas essas prisões que envergonham o nosso país e multiplicam os inimigos do regime. Os beduínos não suportam que alguém toque nas suas mulheres. Ora, muitas dentre elas foram maltratadas. A polícia deveria ter negociado com os chefes das tribos que, somente eles, exercem um poder sobre os beduínos".Depois dos atentados de Charm el-Cheikh, as prisões recrudesceram, provocando um profundo traumatismo e manifestações maciças. A réplica foi severa. Por ocasião das eleições legislativas, em 7 de dezembro, El-Arich foi cercada, atacada com bombas de gás lacrimogêneo e por blindados. "As pessoas ficaram apavoradas", explica Achraf Ayoub. "Eles não viam tais coisas desde a guerra. El-Arich tornou-se um quartel".Abdel Rahman Chourbagui, um candidato dos Irmãos Muçulmanos (movimento islâmico entre moderado e radical), conta que o seu filho de 17 anos "foi interrogado durante dez dias, embora ele seja surdo e mudo! Raed Mallouh, um dos meus simpatizantes", prossegue, "foi torturado com eletricidade. Onde foram fabricados esses aparelhos de tortura? Por que a CIA participa dos interrogatórios? Por que o Egito aceita uma tal ingerência?""Desde os acordos de Camp David [1979]", deplora Achraf Ayoub, "o Sinai vem evoluindo ao sabor da vontade dos israelenses. No fundo, Israel ganhou a guerra, e o Sinai ainda não foi liberado". A cólera e o espírito de vingança rugem.No antigo "souk" (mercado) turístico de Charm el-Cheikh, um operário observa a fachada do centro comercial, que foi reduzido a migalhas no verão passado e hoje está novinho em folha. Vários dos seus colegas morreram durante a explosão. Contudo, resmunga ele, "eu gostaria muito de que alguém o faça explodir novamente". Por quê? "Porque nele eu trampo feito escravo por um salário de merda".

Fonte: Le Monde
Artigo gentilmente enviado por Dalton C. Rocha