8.3.06

A história da escalada do Irão rumo à arma nuclear

"Alegando estar desenvolvendo um programa nuclear civil, o país dotou-se clandestinamente de instalações que permitem desenvolver o enriquecimento do urânio em graus elevados (para fins bélicos), dotadas de dezenas de milhares de centrífugas ligadas entre elas pelo "sistema de cascata"
Natalie Nougayrède

Em agosto de 1974, o xá do Irão, Mohammad Reza Pahlavi, assina um decreto imperial: "Um dia, o petróleo estará esgotado. É uma pena utilizar este produto nobre para fazer fábricas funcionarem, para levar luz dentro das casas. (...) Nós planejamos produzir, assim que possível, 23.000 mega-watts de eletricidade utilizando centrais nucleares". A aventura nuclear iraniana está começando. Demorada, difícil, semeada de hesitações, de interrupções repentinas, de segredos, de tensões, ela inclui, no final da corrida, uma crise diplomática da qual ninguém pode prever o desfecho.O Irão está atualmente na berlinda, ameaçado de isolamento, de sanções, colocado no banco dos réus pela comunidade internacional por ter tentado dotar-se clandestinamente, de 1985 a 2003 - o ano em que os seus atos foram desvendados pelos inspetores da ONU -, da arma atômica, mostrando um total desprezo pelos compromissos que ele assumira em 1970 na qualidade de signatário do tratado de não-proliferação. Nos próximos dias, o Conselho de Segurança da ONU será formalmente acionado para tomar uma decisão sobre este dossiê. Alguns, em Washington e em Israel, planejam resolver o problema por meios militares, desencadeando ataques aéreos contra os centros nucleares sensíveis iranianos, da mesma forma que isso havia sido feito em 1981 contra a central nuclear de Osirak, no Iraque, vendida pela França a Saddam Hussein. De que maneira as coisas chegaram a esse ponto? Como pôde o Irã, depois do Paquistão, que fez a demonstração em 1998 da sua aquisição da bomba atômica, a primeira "bomba muçulmana", escapar durante tantos anos da vigilância internacional? Quem equipou o Irão no campo nuclear? Quem permitiu que o Irão actual, o dos mulás (sacerdotes islâmicos) e do seu novo presidente, Mahmud Ahmadinejad, imbuído de um nacionalismo exaltado e odioso, pudesse acenar para o resto do mundo com o fantasma da arma suprema, a qual poderia muito bem cair nas mãos de um poder de islâmicos fanatizados? A essas indagações, um oficial francês, sentado num belo dia de janeiro de 2006 num avião com destino a Moscou, onde ele iria debater, precisamente, junto com emissários do Kremlin, sobre a maneira com a qual o imbróglio nuclear iraniano poderia ser solucionado, responde tranquilamente: "Para o nuclear civil, é muito simples. Todo mundo ajudou o Irão". E esta é a pura verdade. A França colaborou com o Irã a partir de 1974, ajudando-o a implementar o programa Eurodif, que tinha por objetivo implantar a tecnologia francesa, frente aos americanos, no mercado internacional do enriquecimento do urânio. O xá, que estava começando então a acumular grandes quantidades de "petrodólares", pagou US$ 1 bilhão à França para a construção desta usina no departamento da Drôme (sudeste). Os Estados Unidos não ficaram atrás. Já em 1957, Washington havia assinado com o Irã um acordo de cooperação nuclear civil, no quadro do programa "Átomos para a paz". Reza Pahlavi, um aliado de Washington no Oriente Médio, não excluía, no médio prazo, dotar-se da bomba nuclear, o que teria por efeito de sacramentar seu poderio na região. Ele olhava em volta dele: Israel havia montado 13 ogivas nucleares durante a guerra do Kippour, de 1973, enquanto a Índia havia procedido à sua primeira explosão atômica em 1974. "Mas o interesse do xá pela bomba era bastante comedido", escreveu em 2003 Kenneth Pollack, um antigo responsável do Conselho Nacional de Segurança americano sob Bill Clinton. "Ele havia implantado efetivamente um programa militar nuclear, mas este não havia progredido além das pesquisas de base, e nem era financiado por fartos créditos". Em 1979, a revolução islâmica interrompe de vez seus planos. A ascensão ao poder do aiatolá Khomeini provoca a fuga da sociedade alemã Kraftwerk Union, uma filial da Siemens, que estava trabalhando desde 1976 na construção de uma central nuclear em Bouchehr, na orla do golfo Pérsico. A firma francesa Framatome também se retira do projeto.Vai ser preciso esperar até o ano de 1995 e a conclusão de um contrato com a Rússia de Boris Yeltsin, que se mostrava preocupada em fornecer lucros polpudos para um lobby atômico desorientado com a morte da URSS, para que a atividade nuclear civil iraniana encontre um apoio de bom tamanho. Um apoio, ou uma cobertura prática que permita ocultar desígnios militares inconfessáveis? Até hoje, esta pergunta permanece em aberto. Isso porque a saga nuclear do Irã adquire, em meados dos anos 80, em plena guerra com o Iraque, contornos tão inesperados quanto preocupantes, passando pelos caminhos tortos da conexão clandestina do "pai" da bomba paquistanesa, Abdul Qadeer Khan, um homem que sabe muitas coisas, mas ao qual os serviços de inteligência ocidentais não têm acesso desde que ele foi colocado, em fevereiro de 2004, sob vigilância domiciliar, por ordem do presidente Pervez Musharraf, na sua suntuosa mansão de Islamabad. A marca da "rede Khan" pode ser encontrada na maior parte das revelações que emergem em relação à importância das atividades subterrâneas do Irã. É na cidade de Viena, na Áustria, dentro da austera torre de concreto da Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA), nas ribanceiras do Danúbio, que equipes de especialistas se debruçam, já faz mais de três anos, sobre este vasto mistério. Neste local onde trabalha o Nobel da paz de 2005, Mohamed ElBaradei, os peritos consultam documentos que vêm sendo divulgados no conta-gotas pelo regime dos mulás, analisam minuciosamente imagens de satélites, estudam análises químicas, amostragens colhidas no solo, equipamentos científicos, e destrincham mapas de centros que permaneceram secretos até 2003: o complexo de enriquecimento de urânio de Natanz, no sudeste de Teerã, o de Arak, onde está sendo construído um reator de água pesada (que contém grandes quantidades de hemióxido de deutério), ou ainda o centro militar de Lavizan-Shian, que foi repentinamente derrubado e transformado num parque municipal pelas autoridades iranianas, que andaram se mostrando assustadas. A conclusão dos peritos da ONU, em todos os relatórios que eles vêm emitindo desde 2003, é praticamente sempre a mesma: o Irã mentiu, praticou a omissão, reluta a se explicar claramente, recusa-se a fornecer todos os elementos de um programa que apresenta vastas zonas de sombra. O Conselho de Segurança da ONU, caso ele desencadear num dia ou noutro o mecanismo das sanções, alimentará sua argumentação com esses "buracos" que alteram as explicações iranianas. Diferentemente do caso das supostas armas de destruição maciça do Iraque em 2003, essas avaliações não são o fruto de qualquer distorção de dados por parte da CIA, e sim efetivamente de uma fria análise realizada por peritos internacionais dos quais ninguém contesta a autoridade nem a competência. "Os iranianos reconheceram perante a AIEA que eles haviam obtido equipamentos junto à rede Khan", explica em Washington o especialista David Albright, do Institute for Science and International Security (Instituto em prol da Ciência e da Segurança Internacional). "Abdul Qadeer Khan desempenhou um papel central, ao fornecer-lhes os planos de máquinas centrífugas. Sem isso, os iranianos nada teriam feito de significativo. Mas certos elementos indicam que a China e a Rússia também estiveram envolvidas. Além disso, os serviços de inteligência americanos assim como a AIEA dispõem de uma lista confidencial de sociedades européias que, entre 1985 e por volta de 1993, venderam aos iranianos equipamentos necessários para a construção das centrífugas". Essas sociedades, alemãs e suíças, principalmente, teriam agido em violação dos acordos de garantias da AIEA, na medida em que tais fornecimentos não foram declarados à Agência. A fronteira entre o nuclear civil e o nuclear militar reside essencialmente no grau de enriquecimento do urânio que um país pode desenvolver, por meio principalmente de instalações dotadas de dezenas de milhares de centrífugas ligadas entre elas por um sistema conhecido pelo nome de "sistema de cascata". Segundo um especialista francês, não existe mais dúvida alguma de que o Irão escolheu este caminho: "Eles alegam que os seus equipamentos têm apenas uma finalidade civil, mas isso equivale a querer se dotar na sua casa de uma linha de montagem industrial para a fabricação de munições e de fuzis automáticos, alegando ainda assim estar querendo apenas atirar em pombos com carabina!" O Irão foi bater a todas as portas para desenvolver seu programa nuclear, obtendo certo sucesso, apesar de um recrudescimento da desconfiança ocidental nos anos 90. Contatos foram feitos clandestinamente, na Europa, em Pequim, Moscou, Dubai... A República islâmica conseguiu penetrar, no decorrer dos últimos vinte anos, por inúmeras falhas do sistema internacional de não-proliferação. Os Estados Unidos se mostraram os mais preocupados. Em 1996, Washington interveio para impedir a China de vender a Teerão uma central de conversão de urânio. Tarde demais: os planos já estavam entre as mãos dos iranianos, que puderam concluir as obras em Ispahan. Pequim também foi o maior fornecedor do Irão em hexafluoreto de urânio, o gás utilizado nas centrífugas.Em Viena, um perito da AIEA revela que, "no centro de Arak, tecnologia russa foi utilizada". Além disso, vários elementos de fabricação russa foram assinalados nas atividades iranianas de enriquecimento por meio de laser. Tais comentários permanecem confinados aos círculos de especialistas, longe dos discursos públicos, uma vez que os ocidentais não estão medindo esforços para cortejar Moscou e Pequim, de modo a manter uma frente comum contra Teerão no quadro da ONU. Em Bouchehr, onde trabalham atualmente, segundo confessou o próprio chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, "vários milhares" de técnicos nucleares russos - uma presença, aliás, que torna impossível um eventual ataque aéreo contra este centro, conforme comenta uma fonte diplomática ocidental -, os cartazes são bilíngües, em cirílico e em persa. Será que a Rússia, onde milhares de cientistas procuravam desesperadamente por um emprego durante a crise econômica dos anos 90, chegou a contribuir, oficialmente ou não, para uma etapa militar do programa iraniano? Washington andou alimentando grandes preocupações a este respeito. Esta pergunta, que foi feita pela reportagem de "Le Monde" ao ministro russo das relações exteriores, em 19 de janeiro em Moscou, provocou um desmentido nervoso: "Eu nunca ouvi dizer que uma coisa tão grave pudesse ter acontecido! As nossas atividades vêm sendo realizadas sob o controle da AIEA. Eu lembro também que muitos ocidentais cooperaram com o Irão [no campo do nuclear] ao longo dos últimos vinte anos, muito antes da Rússia. Esta pergunta, seria importante fazê-la também a eles...", reagiu Serguei Lavrov. Então, quem é que carrega a mais pesada responsabilidade? A AIEA, após três anos de trabalho, não foi capaz de determinar com toda certeza se o Irã conseguiu obter planos de uma arma nuclear que seja adaptável, por exemplo, aos seus mísseis Shahhab-3, que lhe foram fornecidos pela Coréia do Norte. O grande depositário deste secreto é sem dúvida o professor Abdul Qadeer Khan, o homem que durante dez anos se tornou um especialista em "proliferar" segredos nucleares em direção do Irã, da Líbia, da Coréia do Norte, e que hoje está recluso no Paquistão, longe dos ouvidos indiscretos. Será que ele falará algum dia? Os Estados Unidos, preocupados em poupar o aliado paquistanês na guerra contra a Al Qaeda, evitam exercer pressões demasiadamente fortes. Aliás, os próprios Estados Unidos - segundo informa um investigador do "New York Times", James Risen, autor de um livro, "State of War" ("Estado de Guerra"), lançado em janeiro, sobre os tropeços da CIA (Agência Central de Inteligência) - também teriam contribuído desastradamente para as atividades ilícitas do Irã. Em fevereiro de 2000, no quadro de uma operação batizada de "Merlin", um agente da CIA de origem russa teria transmitido para a delegação iraniana junto à AIEA um plano falacioso de um equipamento destinado a disparar uma arma nuclear, com o objetivo de induzir Teerã a seguir uma pista falsa. Ora, o agente da CIA teria, na mesma ocasião, informado os iranianos do caráter inexato deste plano, que visava induzi-los ao erro... Segundo James Risen, cujas informações foram qualificadas de "inexatas" pela CIA, esta operação abortada poderia ter ajudado o Irã nas suas tentativas de se dotar da bomba atômica. Um especialista da rede Khan, a respeito da qual ele vem investigando há anos, o jornalista Mark Hibbs, da revista "Nucleonics Week", que vive na Alemanha, estima por sua vez que a pista paquistanesa é bem mais crucial no caso nuclear iraniano. "Isso não quer dizer que a China e a Rússia tenham desempenhado um papel marginal: ele pode até mesmo ter sido considerável. Mas, quando se pretende conduzir atividades nucleares, o mais importante é conseguir obter o know-how, isto é, planos ('blueprint') de centrífugas. E isso, os iranianos o obtiveram junto a Khan".

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