21.2.06

Viagem ao inferno

homenagem da Pilar Rahola a Simon Wiesenthal

“Houve um tempo no qual havia um lugar especial, nas profundezas do inferno, para aqueles que matam intencionalmente crianças. Agora, o assassinato intencional de crianças israelenses está legitimado como conflito armado palestino”. Legitimado e até premiado…, porque esses que matam crianças, não só não vão ao inferno, mas se lhes promete o paraíso…Briggite Gabriel, libanesa que passou sete anos de sua vida vivendo num refúgio subterrâneo, comendo ervas e arrastando-se sob as balas para conseguir água, expressou com esta solenidade, em sua conferência na Universidade de Duke, em outubro de 2004, o autodestrutivo fenómeno que utilizava uma religião e uma fé como álibi para o vale-tudo violento, numa escalada de terror que não se detinha nem diante o mais sagrado da vida. Apesar de haver sido educada no ódio anti-semita, como ela mesmo expressou, a atual presidente e fundadora do American Congress for Truth, foi mais longe em seu processo autocrítico e recordou que, no actual estado de ânimo histórico, “a diferença entre o mundo árabe e Israel é a diferença em valores e carácter. É barbárie versus civilização. É democracia versus ditadura. É bondade versus maldade”. Salman Rushdie tipificou a actual degradação do Islão como um processo de “islamismo paranóico” e alguma outra voz, como a do jornalista marroquino Ali Lambret, alerta sobre o desastre que significa para milhões de pessoas de cultura muçulmana, não ter praticamente nenhuma própria referência democrática. Mas todas elas, desde sua qualidade moral e seu enorme valor ético, são vozes escassas, ilhas exóticas num grande oceano de pensamento único, criticismo intelectual e, sobretudo, fanatismo institucionalizado. E é precisamente isto, sua excepcionalidade, o que nos dá a primeira chave do grave problema que nos espreita. Para chegar a analisar, pois, o novo anti-semitismo que percorre a espinha dorsal do mundo, e cujas muitas cabeças da hidra têm distintos sotaques e gramáticas em função de onde se exibem, é necessário iniciar reflectindo porque, como as citadas, são vozes tão excepcionais. Ou seja, é necessário analisar o pensamento único, niilista e totalitário, que tenta contaminar até a asfixia, cada canto onde habita a meia lua.Primeiro, a reflexão genérica: existe um ressurgimento desse conceito xenófobo, cunhado em 1879 por William Marr para definir seus sentimentos judeófobos – assim nascia a palavra “anti-semita” -, e que, em sua derivação mais perversa, foi responsável pela maior atrocidade da história da humanidade? Abundam tanto os estudos a respeito, entre eles os próprios das instâncias europeias, que seria bastante estúpido perder tempo demonstrando-o. Dia-a-dia, comentário a comentário, nos microfones jornalísticos, nos salões de café, nos debates da televisão, nas declarações políticas e em tudo o que conforma o pensamento colectivo, o judeu está presente, parece incómodo e antipático, e normalmente é discutido, demonizado ou directamente atacado. A confusão entre o judeu e o israelita é absoluta, até o ponto de que um e outro conceito se usa de forma indistinta, e os dois significam algo negativo. Poderíamos dizer, sem demasiado risco de errar, que Israel herdou, de forma integral, a satanização histórica contra o judeu, e conformou uma maneira mais prestigiosa de ser anti-semita: o anti-sionismo ou, directamente, o furibundo antiisraelismo actual. Para expressá-lo de forma mais épica, se os judeus foram, durante séculos, os párias entre os povos, Israel é, no contexto actual, o pária entre os estados. E, certamente, seu presidente é o pária entre os presidentes. Como formulei na Conferência da Unesco, em 2003, intitulada “Os judeus e as moscas”, “o guarda-chuva do anti-sionismo é muito mais cómodo de levar, freia bem a chuva da crítica e permite um disfarce intelectualmente digerível”. Ou seja, é politicamente correcto, o qual é fundamental para poder mover-se com tranquilidade nos cenáculos da inteligência, nas penas dos escritores reconhecidos, nas cátedras dos professores progressistas. Isso explica o fenómeno que ocupará a parte central de minha reflexão: o novo anti-semitismo de esquerda, um anti-semitismo que não responde aos cânones clássicos da extrema-direita, mas a parâmetros modernos cuja escola ideológica olha para a esquerda, e cuja formulação não se delineia em termos de xenofobia, mas, surpreendentemente, de solidariedade. O principal anti-semitismo actual, aquele que influi no pensamento das massas, que destaca as manchetes da informação, o responsável pelo antiisraelismo feroz que invade todo o Ocidente, está assentado na correcção política, é bem visto, é de esquerda e se mobiliza pela justiça, o progresso e a solidariedade. Por isso parece influente e, por isso mesmo, é perigoso, escorregadio e provavelmente inconsciente.Mas antes de entrar numa análise mais profunda do fenómeno, creio ser necessário assinalar os outros dois grandes pensamentos anti-semitas que influem, com mais ou menos força, no estado de opinião geral. Por um lado, o anti-semitismo clássico, perfeitamente travado no DNA do pensamento colectivo, nascido no alvor dos deuses da cruz que, ensinando-nos a amar a Deus, nos ensinaram a odiar os judeus. É certo que a Igreja Católica, depois do importante documento da Nostra Aetate, no Concílio do Vaticano II, fez um grande esforço de autocrítica e pedido de perdão, mas também o é que dois mil anos de cultura religiosa anti-semita deixam um preconceito tão fundo, que acaba formando parte do disco rígido de todos nós. Isso, somado ao fato que em muitos rincões do pensamento cristão ainda pulsa o conceito de povo deicida, e aí está o ignominioso filme “A paixão” de Mel Gibson para corroborá-lo. Sem menosprezar a enorme importância simbólica dos gestos autocríticos de João Paulo II ou a emotiva visita de Bento XVI a uma sinagoga alemã, o mea culpa da Igreja Católica foi mais uma catarse das cúpulas, do que os das massas. Temos, pois, um estigma histórico que ainda goza de uma certa boa saúde… Toda a expansão do cristianismo tem a ver com o êxito do preconceito produzido, e com a absoluta eficácia da demonização de todo um povo para poder dominar, enganar e, sem dúvida, fanatizar as pessoas. Esse anti-semitismo de corte religioso que adveio, com os séculos, um anti-semitismo cultural perfeitamente consolidado no pensamento e, por conseguinte, inconsciente, explica parte da facilidade com que os cidadãos do mundo aceitam hoje os lugares comuns, os preconceitos e as mentiras sobre o povo judeu. E o povo judeu, por excelência, no imaginário moderno, é o povo israelita. Não há tanta distância entre a imagem do judeu medieval, nariz curvo, escorregadio, misterioso e bebedor de sangue das crianças cristãs no Pessach, com o judeu poderoso cuja Magen David ilustra o tanque com o que sistematicamente, segundo as televisões do mundo, mata crianças palestinas. Fixamo-nos naquilo que sempre trata da infância? Se não houvesse sido construído, durante séculos, uma maldade cultural que atravessou o córtex da Europa e marcado a fogo, até o ponto de que nada do que ocorreu na história da Europa pode ser explicado sem o anti-semitismo, dia-a-dia não seria tão fácil vender visões maniqueístas da realidade, tergiversações informativas, nem puras falsidades da história. Este é o anti-semitismo de base que ainda percorre as mentes dos cidadãos que sustentam que Israel é o primeiro problema do mundo; o mesmo que tecla nos computadores dos jornalistas, cujas notícias estão sempre escritas antes de saber sua génese; o mesmo anti-semitismo que explica como mentes ilustradas e teoricamente lidas, podem actuar, com respeito a Israel, como uns ilustres extravagantes. Conscientemente, superamos o anti-semitismo religioso cristão. Inconscientemente, é a pavio que permite o trajecto da pólvora.O outro grande fenómeno anti-semita, enormemente dinâmico e muito mais perigoso, é o anti-semitismo islâmico, autêntica cicatriz que percorre toda a paisagem muçulmana, de orelha a orelha, contaminando não só os cérebros fanatizados, mas também o daqueles que querem viver em paz. Certamente não é um anti-semitismo novo, perfeitamente arraigado no papel que tiveram alguns líderes árabes em pleno apogeu nazista. Como mostra aquela bonita canção que cantavam nos finais dos anos 30 no mundo árabe: “Não mais monsieur, não mais Mister/ No céu Alá, na terra Hitler”. De entre todos os referidos filonazistas, por seu papel de liderança nos árabes palestinos, por seu activismo e por sua escancarada sinceridade, o pódio de honra do anti-semitismo árabe o ganhou meritoriamente o antigo grão-mufti de Jerusalém, Haj Amin Al Husseini, amigo pessoal de Ribbentrop, Rosenberg e Himmler. Al Husseini não só converteu em pensamento global sua famosa frase - “Alá conferiu a nós o raro privilégio de finalizar o que Hitler tão só começou. Deixemos que comece a Jihad. Matem os judeus. Matem todos eles” -, mas trabalhou com denodo para conseguir que fosse uma realidade. Progroms contra os judeus do Mandato Britânico, tentativa de golpe de estado pró-nazista no Iraque, pressão sobre as Índias Orientais Holandesas para que aceitassem o domínio japonês, incitação das populações nativas do Zagreb francês para que rechacem a ocupação aliada, exílio na Alemanha a partir de 1941, vivendo com todas as honras e com o maior dos entusiasmos a consagração do nazismo. Entre as muitas pérolas deste personagem sinistro, fica, para a história do horror, a pressão que exerceu sobre Hitler para que não permitisse a saída de milhares de judeus da Hungria. E, certamente, sua medalha mais apreciada, sua intervenção directa com Adolf Eichmann para que não pactuasse, com o governo britânico, o intercâmbio de prisioneiros de guerra alemães por 5.000 crianças judias que deviam ser embarcadas até a Terra Santa. As crianças não viajaram para a Palestina, mas até os campos de extermínio da Polónia. Foi numa viagem a Auschwitz que admoestou os guardas, porque eram demasiado “brandos” com os judeus. Também foi responsável pelo esquadrão “Hanjar”, a companhia de bósnios das Waffen SS que exterminaram 90% dos judeus da Bósnia. Heinrich Himmler, em agradecimento, chegou a criar uma escola especial para mullahs em Dresden. Poderia considerar-se, contudo, que Al Husseini não representa um anti-semitismo filonazista árabe, mas só seu próprio, derivado da maldade e loucura. Mas ele não é assim se se tem em conta que foi um autêntico ídolo até sua morte (1974), que teve um papel relevante nos inícios da confrontação árabe-israel e que, membro fundamental do clã Al Husseini (um de cujos ramos mais modestos gerou outro grande nome próprio na área, Yasser Arafat), ainda hoje seu nome inspira respeito. Ou seja, a diferença da Alemanha actual, que fez as pazes com sua memória negra, sua culpa e sua responsabilidade, o mundo árabe nunca fez autocrítica com os líderes filonazistas, não considera necessária uma revisão da história (a Síria teve asilado como assessor do governo Alois Brunner, braço direito de Eichmann no Escritório de Assuntos Judaicos do Terceiro Reich, e ele não foi nunca um problema) e incorporou o seu sistema de preconceitos, com absoluta normalidade e convicção, o edifício de mentiras e falsidades da propaganda goebbelliana.Com certeza, se o anti-semitismo de feitio islâmico ficasse só em sua opção histórica ao nazismo, não seria o fenómeno vigoroso que representa na actualidade. Muito pelo contrário, o anti-semitismo islâmico conseguiu unir todos os lugares comuns da judeufobia, desde os religiosos, até os sociais ou políticos, e assim se encontram em alegre companhia desde os mitos infantis do anti-semitismo medieval cristão, passando pelos político-sociais da Okrana russa em seus “Protocolos”, até os modernos do anti-sionismo (entendido como combate contra o “imperialismo”) ou os próprios mitos corânicos. Especialmente populares são as Suras dedicadas aos judeus (“Os judeus não merecem senão o opróbrio [abjecção extrema] na vida presente, e ser rechaçados no Dia da Ressurreição o tormento mais duro”. Sura 2, 85…). Como disse o estudioso do fenómeno Patrício Brodsky, “o antijudaísmo no mundo árabe alcança o categoria de sentido comum”, “ocupa um lugar central no pensamento hegemónico dominante — único — na totalidade dos países árabes e, pela via da repetição dos preconceitos construída como política de Estado vai criando lentamente o consenso de que “os judeus não são parte da humanidade”. Disso resulta fácil a educação em massa nesse estigma, o preconceito e o ódio aos judeus.Na maioria dos casos, esse ódio passa aos ocidentais. Ao fim e ao cabo não é o judeu o paradigma dos valores ocidentais? Filmes, séries de televisão — como a que foi ao ar em pleno Ramadão, na televisão pública egípcia —, livros de textos, manuais anti-semitas clássicos convertidos em best sellers — entre eles, “Os protocolos” e o próprio Mein Kampf — artigos e editoriais, prédicas religiosas… O anti-semitismo está na base da cultura islâmica atual, contamina as escolas, a informação e representa o motor do discurso político. Ele ocorre ante a indiferença ocidental, ante a tradicional e previsível passividade da ONU, e com a cumplicidade do mundo intelectual livre. Não parece que nos preocupa que 1 bilião e 300 milhões de pessoas estejam sendo educadas na primeira escola do ódio que é o anti-semitismo. E recordemos o básico: ensinar a odiar os judeus é, simplesmente, ensinar a odiar.Este anti-semitismo, além do mais, não só actua de forma precisa nas sociedades islâmicas, mas coopta as organizações sociais, cívicas e religiosas, de carácter islâmico, que habitam nas sociedades democráticas. De fato, é praticamente impossível encontrar uma só Ong islâmica que não seja, em sua formulação teórica, radicalmente anti-semita. E muitas destas Ongs são convidadas a congressos, se consideram solidárias e têm um prestígio reconhecido. Algumas delas foram responsáveis pelo escândalo anti-semita do Fórum de Durban. Pessoalmente pude vivê-lo no último Fórum Social de Porto Alegre, onde o anti-semitismo campeava alegremente entre discursos antiglobalizantes, épicos pan-arabistas, e revoluções diversas. E não se trata só de um anti-semitismo verbal porque a maioria dos actos anti-semitas violentos, que ocorreram na Europa, nos últimos tempos, foram obra de jovens europeus muçulmanos. O filósofo Luc Ferry, ex-ministro francês da Educação, junto com Jean-Pierre Raffarin, impulsionador da controvertida, mas eficaz “lei do véu” dava estes dados de atos anti-semitas em seu próprio país: “90 por cento dos atos de anti-semitismo na França são perpetrados por jovenzinhos árabes”. E acrescenta: “isto é particularmente grave porque é tolerado. As pessoas da esquerda sentem que, desta maneira, os atos anti-semitas têm mais legitimidade do que se viessem da extrema direita”. Anti-semitismo clássico de formato cristão e anti-semitismo moderno à maneira islâmica, um alicate de difícil amparo. Se a isso somarmos o anti-semitismo laico, moderno, prestigioso e “solidário” do pensamento da esquerda, podemos afirmar que a situação é muito mais grave do que parece cómodo reconhecer. Grave, especialmente, porque à diferença das outras escolas do anti-semitismo, o anti-semitismo de esquerda não se reconhece como tal, nega sua natureza e, inclusive, considera uma ofensa inaceitável que se considere como tal. Se a esquerda é, por excelência, antifascista, como pode ser rotulada de anti-semita, considerando que o anti-semitismo como elemento genuíno do fascismo? Pode, e o fenómeno, especialmente virulento na actualidade, nem é novo nem é surpreendente. De fato, em suas raízes, temos que buscá-lo na hostilidade doutrinal dos bolcheviques contra o sionismo, na época da Rússia pré-revolucionária, e isso apesar da enorme quantidade de judeus que lideraram e tomaram parte da Revolução. Não é este o espaço para enumerar a sistemática perseguição judaica na Rússia dos Sovietes, mas parece evidente que os lemas do Komintern recuperaram de imediato a gramática da inveterada judeufobia russa (alma mater das perseguições que criariam as primeiras reivindicações de um estado judeu próprio. A França de Dreyfuss faria o resto…), e rapidamente estigmatizaram o sionismo como um movimento pequeno-burguês, contra-revolucionário, peão do imperialismo britânico e inimigo acérrimo da União Soviética. É certo que existe um notabilíssimo parêntesis, na global política soviética furibundamente antijudaica, que assinalou um marco da história. O discurso de Andrei Gromyko, em 14 de maio de 1947, na sede de Nações Unidas, proclamando o direito do povo judeu a ter um estado. “Não se pode justificar o rechaço deste direito ao povo judeu, se temos em consideração tudo o que sofreu no curso da Segunda Guerra Mundial”, remataria com a solenidade do momento. E certamente se tratava de um momento solene, prelúdio do sábado, 29 de novembro de 1947, o dia em que, na sede provisória do edifício Flushing Meadows, em Lake Success, a Assembléia Geral da ONU votou a favor do plano de partilha da Palestina por 33 votos a favor, 13 votos contra e 10 abstenções. Como afirma o prestigioso historiador Joan Culla, “é muito provável que, sem o apadrinhamento soviético — tanto ou mais importante que o norte-americano —, o Estado de Israel não teria chegado a nascer”.Mas é um breve idílio, que não nasce da convicção ideológica e a vontade política, mas perfeitamente explicável em termos de interesses geo-estratégicos: uma URSS fortalecida depois da Segunda Guerra Mundial, mas sem presença no Oriente Médio; sociedades árabes tradicionalistas, onde o comunismo não conseguiu rupturas, e que são governadas por ditaduras feudais apadrinhadas pela Grã-Bretanha; pressão cada vez mais importante dos Estados Unidos contra o expansionismo soviético (começam os tempos da “doutrina Truman”); comunidades judaicas, na Palestina, frontalmente enfrentando o imperialismo britânico, e com muitíssimos de seus membros oriundos de Rússia, entusiastas colectivistas e maioritariamente portadores dos ideais marxistas. Com esta soma de elementos, e com a segurança de que a criação de um Estado judeu pode ser um factor desestabilizador no mundo árabe que aguça a hostilidade contra a Inglaterra e os Estados Unidos (e favoreça à penetração soviética), Stalin toma momentaneamente partido e de 46 a 47, o paladino da esquerda no mundo se converte num “aliado objectivo” da causa judaica na Terra Santa. Isso não é óbice, certamente, para que Stalin mantenha sua política anti-semita no interior da URSS e só há que recordar o assassinato do Presidente do Comité Antifascista Judaico, o dramaturgo do Yiddish Art Theatre, Solomon Mikhoels e, com ele, o encarceramento de mais de 100 judeus do comité, acusados de ser “cosmopolitas desarreigados”. Ocorreu em 1948, justo no mesmo ano em que a URSS e o resplandecente Estado de Israel trocam embaixadores. Depois viriam tantos e tantos processos anti-semitas, entre eles o famoso banho de sangue que se seguiu ao delirante “complô das batas brancas” de 1953, a prisão de todos os coronéis e generais judeus, a obrigação a Vycheslav Molotov de separar-se de Polina, sua mulher judia e o assassinato indiscriminado de escritores, poetas, cientistas e dirigentes políticos de origem judaica. Numa só noite, 217 escritores que escreviam em iídiche, 108 actores, 87 pintores e 19 músicos, desapareceram, engolidos no gulag siberiano. Entre os assassinados, cabe recordar o grande escritor iídiche Peter Markish, o poeta Itzhik Feffer e o escritor David Bergelson.Contudo, a atitude global da esquerda europeia, em socorro da atitude que, durante décadas terá a União Soviética com respeito ao conflito árabe-israelense, não surge do anti-semitismo ancestral russo, perfeitamente inserido no “homem novo” soviético, mas da política exterior que a URSS praticará desde quase o começo de sua relação com Israel. Os historiadores explicam a “mudança de rumo” dos soviéticos — quase imediato — na sua política de alianças, fundamentalmente por dois motivos. Um do tipo interior, a convicção de que os judeus russos são uma espécie de quinta-coluna a serviço do novo estado. Neste sentido, é histórica as completas boas-vindas que recebe Golda Meir como brilhante embaixadora de Israel em Moscou, por parte dos judeus moscovitas. E outro, geoestratégico, facilmente explicável. Os cálculos de Stalin de uma espécie de “cunha marxista judaica” no coração do Oriente Médio, ficaram prontamente desmentidos. Israel nascia no alvor da Guerra Fria, com um apadrinhamento compartilhado por russos e americanos, necessitado do delicado equilíbrio entre o dinheiro destes últimos (5 milhões de judeus norte-americanos eram um seguro de vida financeiro), e a sensibilidade do eleitorado com 18% de eleitores israelenses filo soviéticos. “O não-alinhamento e a eqüidistância entre Washington e Moscou — assegura o historiador Culla — pareciam a receita ideal”, e és a que Ben Gurion tomou como própria. Depois viria a guerra da Coréia, o voto israelense no grupo ocidental, e a longa paranóia comunista contra o complô judeu, que culminaria no famoso Processo Slansky, o primeiro na história do anti-semitismo, depois da Shoá, que falaria oficialmente de uma “conspiração judaica internacional”, processando e condenando diversos judeus tchecos, entre eles o Secretário Geral do partido, Rudolf Slansky, e condenando Israel como “país espião”. A proclamação do sionismo como “inimigo número 1 da classe operária”, pouco tempo depois, caiu como fruta madura de um longo processo demonizador. Morto Stalin, a política de Kruschev seria a política definitiva do bloco comunista e da prática totalidade da intelectualidade da esquerda mundial, até a chegada de Gorbatchov: aposta decidida pelos países árabes, incluindo uma massiva ajuda militar, alienação contra Israel nos organismos internacionais, pressão nos países satélites contra Israel, diversas e teatrais rupturas de relações diplomáticas, estigmatização de Israel como “peão do imperialismo americano”, apologia da luta árabe, convertida em paladino do progressismo e da justiça, e apoio, mais ou menos explícito, aos grupos terroristas palestinos que apareceriam imediatamente. A Resolução 3376 da ONU, aprovada em 10 de novembro de 1975, e que condenava o sionismo como “uma forma de racismo e de discriminação racial”, seria o ponto gélido de um processo de lenta criminalização, tão perfeitamente explicável em termos de interesses geoestratégicos, como desagregável em termos ideológicos e morais. Certamente, representaria também a constatação do fracasso completo da ONU como paladino dos direitos fundamentais. Um fracasso que havia começado a complicar-se alguns meses antes, quando num 13 de novembro de 1974, a ONU permitiu que Arafat, falasse em sua Assembleia Geral, portando “um fuzil de combatente da liberdade”. Ou seja, aceitou por legítimo o terrorismo como método de luta.Tudo o que ocorre hoje na imprensa, nas universidades, no mundo intelectual, essa corrente de opinião poderosa que converte o estado democrático de Israel no país mais perigoso do mundo, a mesma que descreve um presidente eleito democraticamente, Ariel Sharon, como um personagem malvado susceptível de merecer comparações nazistas, mas nunca julga nenhum ditador islâmico; essa mesma corrente que idealiza os terroristas palestinos, mas negoceia com desprezo as vítimas israelitas; a mesma que eleva um líder corrupto, violento e despótico chamado Arafat, no paladino da luta heróica romântica (o substituto de Che Guevara nos pôsteres dos ex-adolescentes revolucionários, hoje convertidos em intelectuais laureados); essa mesma que tem como guru um prémio Nobel de Literatura cujo anti-semitismo é sócio-fundador de seu comunismo irredento, guru que se declara contra a cerca de segurança israelita, construída para salvar vidas, mas aplaudiu sempre as bondades do Muro de Berlim. Toda essa corrente de opinião, politicamente correcta, inserida no bom-mocismo da solidariedade e da justiça, que fez a passagem de Che Guevara a Arafat sem despentear-se, provém desse grande fenómeno histórico que foi sendo gestado durante décadas de discurso anti-sionista, de demonização judaica e de paternalismo pan-arabista. Ainda que, como disse Alain Finkielkraut, a esquerda europeia manteve seu idílio com Israel durante duas décadas, a partir do final dos anos 60, sua atitude muda radicalmente. Por um lado a URSS consegue fazer hegemónico seu discurso de criminalização antiisraelita; por outro, entre as manifestações contra o Vietnã e em Maio de 68, a esquerda europeia descobre o Terceiro Mundo como o último reduto da utopia contra o imperialismo; finalmente, essas massas de sobreviventes de Auschwitz, socializantes e cooperativistas, foram-se convertendo rapidamente numa potência militar, tecnológica e científica, e Israel deixa de ser David para passar a ser Golias. Disse Culla: “a partir de então, e da confluência entre o terceiro mundismo e o comunismo clássico, nascem no Ocidente uma mitologia, uma simbologia, uma iconografia novas: ao lado dos heróicos combatentes do Vietnã que, sabiamente dirigidos pelo Tio Ho e o general Giap, desafiam o imperialismo americano nas selvas da Indochina, emergem os fedayin palestinos e Arafat, seu líder, em luta desigual contra Israel, a cabeça de ponte de Washington no Oriente Próximo”. A partir daí, no campo diplomático, actua contra Israel o peso específico do bloco comunista. No campo militar, a URSS arma uma e outra vez todos os inimigos de Israel. No terreno da ação violenta, os grupos terroristas de extrema-esquerda estabelecem vínculos de colaboração com a OLP, e lhes dão apoio logístico em troca de treino em suas bases guerrilheiras do Líbano. Resta lembrar, por exemplo, a participação dos militantes da Rotes Armes Fraktion alemã em alguns dos mais notórios sequestros aéreos palestinos. Ou os atentados anti-israelitas em Paris em 82 da Action Directe francesa, ou a cumplicidade da Frente de Libertação da Palestina com as Brigadas Vermelhas italianas e com o Nihon Sekigun, o Exército Vermelho Japonês que perpetra, em 72, a matança de 27 viajantes no aeroporto de Lod. Como não podia ser de outra maneira, no campo das idéias, também se consolida o matrimónio entre a esquerda ocidental e a luta palestina e, com vai-e-vens mais ou menos acidentados, esse matrimónio se projecta até a actualidade. Tanto, que cai o comunismo, mas não cai a demonização contra Israel.Assim, pois, e apesar de ter mudado notoriamente os agentes que motivaram a crítica frontal das esquerdas contra Israel, entre eles, a queda do bloco comunista, não só não mudou essa crítica frontal, como nos últimos foi intensificado, cresceu em conveniência e em prestígio e conseguiu se insinuar no pensamento global. É certo que temos vivido momentos de menos agressividade anti-israelita, e que a chegada de Sharon ao poder coincidiu plenamente com o momento álgido da criminalização contra Israel, mas também o é que Sharon foi mais a desculpa, que a causa de dita criminalização. A esquerda, a mesma que permitiu a impunidade dos ditadores da “liberdade”, a mesma que não informou da repressão nos campos da utopia, a mesma que foi para a cama com todo tipo de monstros, essa mesma tampouco nunca revisou sua atitude anti-israelita. Me dirão que, inclusive sendo certo a análise, isso representaria um antiisraelismo feroz, mas não um anti-semitismo. É possível, e de fato, sem nenhuma dúvida, existem críticas anti-israelita que não podem ser consideradas anti-semitas. Mas a criação de um estado de opinião ferozmente militante, baseado no maniqueísmo de um conflito (situando o judeu na fronteira da maldade, e o palestino na da bondade, na minimização do terrorismo, na solidariedade selectiva, na degradação profissional da informação e até na pura mentira, é algo mais que crítica a um governo ou a um Estado. O que ocorre com o conflito árabe-israelita não ocorre com nenhum outro conflito do mundo, nenhum outro país sofre a pressão brutal de que Israel padece, considerado culpado de todas as culpas; nenhum outro terrorismo é considerado com o paternalismo do que desfruta o terrorismo palestino; e nenhuma informação sobre o mundo, está tão tergiversada e manipulada, como a que se produz a respeito de Israel. Intelectuais de prestígio, jornalistas de renome, meios importantes de comunicação, desperdiçam com Israel as folhas, o rigor e a seriedade. Recordemos Edgard Morin e a condenação por anti-semitismo do prestigioso jornal “Le Monde”, como notável exemplo… Parece até que uma parte da inteligência do mundo, quando fala sobre Israel, não utiliza o cérebro, mas o estômago. Preconceito anti-semita? Em qualquer caso, um juízo prévio de demonização cujas raízes são plurais, muito antigas, inconscientes e profundamente injustas. Simon Wiesenthal lutou denodadamente contra o anti-semitismo de extrema direita que marcou as entranhas da Europa e escreveu o capítulo mais obscuro de sua história. Mas se alguns de nós, em coro com Elie Wiesel, acreditávamos que o anti-semitismo morria com Auschwitz, agora já sabemos que não é assim. Do anti-semitismo integral islâmico, passando pelo niilismo destruidor do fundamentalismo, até o anti-semitismo educado, ilustrado e “correto” do progressismo internacional, todos os fenómenos confluem num renovado estigma antijudaico. E não parece que isso preocupe a Inteligência do mundo, majoritariamente activa na criação do estigma ou directamente indiferente ante sua concretização. A traição do pensamento em relação ao povo judeu é tripla: bane o sionismo da correcção ideológica, de maneira que mina as raízes até da existência do Estado de Israel; bane Israel e seu governante do concerto das nações legítimas, de forma a situá-lo fora da legitimidade moral; e, com tudo isso, bane os judeus do direito internacional. O pior é que, sendo esta atitude o resultado final da “solidariedade” com o povo palestino, não é uma atitude que sirva para que dito povo chegue à paz. O principal inimigo do povo palestino é o terrorismo que mata em seu nome. E, em vista da perversa utilização árabe da causa palestina, provavelmente o único amigo que pode ter é Israel. Todavia, a esquerda e globalmente o pensamento comprometido, foi tão irresponsável em seu paternalismo acrítico com o terrorismo, e tão ferozmente obsessivo em sua crítica a Israel, que longe de alimentar as vias de saída, consolidou e alimentou todas as vias mortas. Finalmente, na linha da frase de Briggite Gabriel que abriu este texto, há que assinalar, como irresponsabilidade notória, a indiferença com que a esquerda enfrenta o fenómeno ideológico do fundamentalismo islâmico. Entretida em sua obsessão anti-americana e anti-israelita, parte da impunidade com que nasceu, cresceu e actuou o niilismo islâmico, se deve à falta de uma consciência colectiva sobre a sua periculosidade. Falharam os intelectuais, novamente… Seria longa uma análise e não é o texto para fazê-lo, mas em parte tem a ver com uma esquerda que foi sempre anti-ocidental, e portanto, não tão distante de algumas das obsessões que o próprio islamismo integrista apresenta. Em qualquer caso, fica dito que foi em Israel onde mais e mais, impunemente se matou em nome do niilismo islâmico, e cada vítima israelita negada, ignorada, desprezada pela Inteligência ocidental, preparou o caminho para as matanças de Atocha e de Londres. A justificativa da ideologia, com base numa causa superior, não ajudou a bondade da dita causa, mas sim ajudou a maldade da ideologia. Não se trata só, pois, de anti-semitismo. Trata-se também de irresponsabilidade.“Como Fausto, havia vendido minha alma por fazer um edifício. Agora havia me encontrado Mefistófeles. Não me pareceu menos absorvente que o de Goethe”, disse o famoso arquitecto Albert Speer, referindo-se a Hitler. Com esta ideia, forjou-se o mito do nazista bom, inocente apesar de fazer parte do círculo íntimo do ditador e apesar de chegar a ser ministro de Armamentos e Munições. “Acima de tudo, eu era arquitecto”, repetia Speer enquanto afirmava reiteradamente que não sabia nada do Holocausto. Anos depois, Simon Wiesenthal, numa conversação cara a cara, alfinetou-o: “se tivéssemos sabido o que sabemos agora, você seria enforcado em Nüremberg em 1946”. Speer emudeceu e Wiesenthal acrescentou: “sempre soube que tinha razão”. Hoje, numa triste coincidência com o final de minha análise, está morto Simon Wiesenthal. Seu lema, “não há liberdade sem justiça”, motivou décadas de esforço, de luta e de êxito. Considero pertinente recordar, em um improvisado in memoriam seu papel na identificação de Karl Silberbauer, o oficial da Gestapo responsável pela detenção de Anne Frank; na prisão do comandante de Treblinka Franz Stangl e na identificação e detenção de Hermine Braunsteiner, a alegre dona-de-casa que vivia no Queens e que tinha supervisionado o assassinato de centenas de crianças durante a guerra. E, certamente, seu notável papel na identificação, detenção e posterior julgamento contra o aplicado responsável por levar a cabo a solução final, Adolf Eichmann. Contemplando o julgamento em Israel contra Eichamnn, Hanna Arendt escreveu sua famosa reflexão sobre a “banalização do mal”, impressionada pela mediocridade e a simplicidade do malvado personagem. Com isso termino, com a homenagem a um judeu lutador e valente, que entregou sua vida a perseguir o mal. E com a lembrança desse mal, que o foi tanto pela malvadeza, como pela banalização. O anti-semitismo é a escola da intolerância, o preconceito que mais eficazmente ensinou a odiar e o que melhor soube matar. Promovê-lo é um crime. Banalizá-lo é uma cumplicidade. Não combatê-lo, uma irresponsabilidade.

Texto para um livro homenageando Simon Wiesenthal.
Centro Simon Wiesenthal. Paris. França.
http://www.visaojudaica.com.br